Comecei a ter receios quanto à integração do Cone Sul, particularmente ao Mercosul. Esse tema está presente em nossas preocupações permanentes porque essa iniciativa é sem dúvida nenhuma a mais importante tomada pelo nosso país e pela Argentina no sentido de mudar a história do continente.
O mundo marcha para uma acentuada organização em torno de blocos econômicos. Não é uma tendência nova, mas vem se consolidando ao longo de décadas. A China, depois da visita do presidente Hu Jintao ao Brasil, propõe uma área de livre comércio na Ásia, abrangendo os países da costa leste, que vão da Malásia passando por Cingapura e alcançando Tailândia, Vietnã, China e Coréia. Certamente será um bloco de grande peso na economia mundial, já descompensada com a presença dominante da China - crescendo a mais de 10% ao ano.
Enquanto isso, nós ficamos engasgados com mosquito, brigando por sapatos, geladeiras e lavadeiras.
A visão política, esse olho que transcende o conjuntural e é capaz de ver a floresta e o que acontecerá com ela, está desaparecendo no conjunto do bloco. O Brasil tem tido uma conduta impecável, cedendo, contendo interesses menores que se instalam em alguns setores industriais nossos, mas não vejo com a mesma determinação nossos parceiros. Menem fez tudo contra o Mercosul. Ele visava uma aliança quimérica e impossível com os EUA, que deveria ir além dos assuntos de economia e política para derramar-se pela área militar, colocando a Argentina na Otan, isto é, mudando a geografia.
De la Rúa assumiu dizendo que ia ter outra conduta. Voltar às idéias primitivas da integração por setores, não se limitando apenas ao comércio, mas com integração física, cultural, política. Mas foi um Menem aguado.
Com Kirchner e sua relação pessoal com Lula, acenderam-se os fogos do otimismo de que as coisas iriam realmente tomar a direção certa.
O que acontece? O Mercosul não consegue nem se entender, não digo em nível regional, mas em nível mundial. A nossa candidatura à OMC, com o nome extraordinário do embaixador Seixas Correa, que tem densidade internacional, não é apoiada pelo continente sul-americano. O Brasil nunca quis ser hegemônico. Nós sabemos ter a humildade de dizer e praticar que, sem a Argentina - como aconteceu na Europa com a França e a Alemanha -, sem a nossa sintonia perfeita, não há como melhorar a sorte da América do Sul, que não pode continuar com seus índices de pobreza e com a falta de perspectiva em que se encontra.
Com o Mercosul, parou a desindustrialização (que nome comprido) da Argentina. Ela pode reter a indústria automobilística e sobreviver com a do aço.
A Declaração de Iguaçu é de 30 de novembro de 1985. Fazem dez anos da Ata de Ouro Preto. Que o espírito de estadista de Alfonsín, grande homem das Américas, desça sobre essas comemorações. Está faltando Alfonsín, o ideal maior da integração, para crescermos juntos, para mudarmos o futuro.
Acabemos com o rabicho das questões menores. Volto aos meus ditados nordestinos: "Rabicho corta rabo de boi, que dirá de gente!".
Folha de São Paulo (São Paulo) 03/12/2004