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O mistério do AF 447

 

Há quase duas semanas, a queda do Airbus da Air France resiste à concorrência dos noticiários, que vão da casa de Berlusconi, na Sardenha, à vitória dos conservadores nas eleições do parlamento europeu, ao pronunciamento histórico de Obama no Cairo, onde estendeu a mão ao reconhecimento da contribuição islâmica à história da humanidade, e a suas palavras em Buchenwald, recordando o que jamais deve ser esquecido: o holocausto, em que milhões de judeus morreram nos campos de concentração.


Todos que tivemos a graça da vida vivemos nosso destino e vicissitudes. Mas quando na tragédia muitos destinos se cruzam irmanados na morte inesperada, desperta em cada um de nós a solidariedade na dor, a meditação sobre o perigo de viver, como dizia Guimarães Rosa. Unem-se e se cruzam as histórias como desse maestro cheio de vida e talento, com o desconhecido comissário que ia para um encontro com a namorada, na Place des Vosges, que jamais vai ocorrer.


Some-se a tudo isso a perplexidade que desfila em nossa imaginação de uma noite de tempestade, raios, sensores eletrônicos como bruxos e mágicos a governarem máquinas, fazer cálculos e o mar, que sempre foi e será um mistério maior, desde os tempos em que era chamado de mar tenebroso, aquele que ficava além das costas da África com monstros e abismos – o mais célebre para nós, o Adamastor, o gigante de Camões.


Foi nesse mar que esses destinos mergulharam. Agora acompanhamos cotidianamente esse trabalho excepcional da Força Aérea Brasileira e da Marinha do Brasil, que dia e noite buscam as relíquias dos corpos e pedaços de alumínio, papelão, sacolas, poltronas, fios e tecidos. O que ocorreu naqueles quatro minutos em que as mensagens dispararam como pedidos de socorro, sem receber de volta nenhuma luz que pudesse guiar as mãos que procuravam controlar aquele orgulho da tecnologia da aviação, que despencava para os abismos das águas?


Estou com um chofer em São Paulo e seu assunto não é a política nem o futebol, é a tragédia com avião A 330. E me explica que vamos achar a caixa-preta, que dirá tudo: “O Presidente Lula é quem tem razão. Se achamos petróleo e sal a 6 mil metros de profundidade, vamos achar a mala preta do avião a 2 mil.” Fico pensando como o Lula conhece o imaginário popular. Mas eu permaneço preso à tragédia das pessoas, às lágrimas dos que perderam a esperança e nestes pobres andrajos de carne carregados em helicópteros e levados para os necrotérios. Razão tinha Santo Agostinho diante de um corpo morto – dizia que ali estava a presença de Deus, restando uma só pergunta: “Onde está sua alma?”.


Folha de S. Paulo, 12/6/2009