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Sem delações, nada feito

 

Curioso o que aconteceu com a reputação do delator, que, com o tempo, passou de vilão a protagonista, de vil traidor a indispensável colaborador da Justiça. Aprendemos no colégio — eu pelo menos aprendi — que Calabar foi o mais desprezível personagem de nossa História por mudar de lado, abandonando os portugueses e se aliando aos inimigos holandeses. Historiadores relativizam esse papel, mas “calabar” e seus equivalentes permanecem como sinônimos de um imperdoável tipo presente em vários momentos e ambientes. No “tribunal do tráfico”, o “X-9” é barbaramente torturado antes de ser executado sem apelação. No golpe militar de 64, uma das figuras mais abomináveis não foi um repressor, mas um “dedo-duro”, o Cabo Ancelmo que, expulso da Marinha por liderar um motim, virou agente duplo e foi o responsável pela chacina de seis pessoas, incluindo sua mulher grávida. Exemplo oposto foi o da jovem de codinome Estela, Vanda ou Luiza, que não “entregou” ninguém, apesar de submetida ao pau-de-arara e a choques elétricos.

Por coincidência, caberia a essa ex-militante, já com o nome verdadeiro de Dilma Rousseff e na Presidência da República, homologar a Lei de Organizações Criminosas (12.850/13) que torna a “colaboração premiada” instrumento legítimo para romper pactos de silêncio entre criminosos. Por outra ironia da história, a delação está sendo usada contra ela por ex-aliados, entre os quais estão os marqueteiros de suas campanhas, que a acusam de saber de caixa 2. O próximo delator pode ser seu ex-chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, que já acenou ao juiz Sérgio Moro com sua disposição de colaborar.

Como é um benefício legal que oferece vantagens ao réu — diminuição da pena de 1/3 a 2/3, regime semiaberto, perdão judicial e até extinção da pena — são poucos os que, como José Dirceu, resistem à tentação, pelo menos até agora. Além dos que resistem, há os que têm suas propostas não aceitas. Nem todo candidato dispõe das valiosas ofertas de Emílio e Marcelo Odebrecht ou de um Leo Pinheiro (OAS), que, por ter sido amigo íntimo de Lula, promete provas que seriam suficientes para incriminar irremediavelmente o ex-presidente.

O fato é que, por meio desses acordos de colaboração, a Lava-Jato conseguiu, em três anos, prender poderosos corruptos e corruptores, e devolver aos cofres públicos cerca de R$ 5 bilhões roubados. De que outra maneira se obteria idênticos resultados? Mesmo os que não gostam da Operação do juiz Sérgio Moro, por temê-la ou por antipatia, devem admitir que sem as delações a devassa não seria possível. Há um consenso quanto à necessidade de mudança do sistema político que aí está, mas o primeiro passo é a remoção da lama.

O Globo, 26/04/2017