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Impressões do sertão

 

Sergio Martins

Jornal do Brasil (14.03.2006)

 

 

Ariano Suassuna mostra, em exposição na ABL, as xilogravuras que fez para ilustrar o seu próximo romance, ainda em gestação.

O novo romance de Ariano Suassuna ainda não está terminado nem tem nome. Mas já tem, digamos, uma cara. É que suas ilustrações estão prontas. Elas são o resultado de um trabalho desenvolvido desde a última década pelo escritor paraibano radicado em Pernambuco e estarão à disposição do público a partir de hoje, às 19h, na Galeria Manuel Bandeira da Academia Brasileira de Letras, no Centro, quando será inaugurada a exposição Do reino encantado: iluminogravuras de Ariano Suassuna e fotografias de Gustavo Moura. Também hoje o escritor abre o ano acadêmico da ABL às 17h30, com a aula-espetáculo Raízes populares da cultura brasileira. É um senhor ato do compadecido.

Dramaturgo, ensaísta, romancista, professor, fundador do Movimento Armorial - que formalmente desde a década de 70, mas de fato desde os anos 50, luta para criar uma arte erudita brasileira a partir da arte regional brasileira -, o acadêmico Ariano Suassuna, de 78 anos e ocupante da cadeira 32 da ABL, vê-se agora, também é artista plástico. As imagens - às quais o JB teve acesso com exclusividade e que ilustram esta página - lembram as xilogravuras típicas da literatura de cordel, mas trazem cores intensas. Mostram algumas figuras um tanto rupestres em um canto, alguns seres fantásticos em outro, construções quase heráldicas em certos pontos. São as iluminogravuras, criadas para ilustrar o livro que está em fase final de produção. A expressão é fruto da junção das palavras iluminura - decoração feita em páginas de livros, tão cara à cultura do cordel, tão cara a Suassuna - e gravura - xilogravura, aliás. Mas, modesto, o gravador não se considera um artista plástico.

- Meus desenhos nascem da imagem literária e têm um papel secundário em relação à literatura - diz ele, em uma troca de e-mails surpreendente para quem já disse que o computador é uma espécie de encarnação da besta do Apocalipse.

O novo romance está sendo gestado desde 1991, dez anos depois do anúncio de uma aposentadoria literária que deve ser finalmente rompida em breve na prática, com a publicação, pela editora José Olympio, daquele que será seu quinto romance. O último, Romance da pedra do reino, foi lançado em 1970, no dia do quadragésimo aniversário do assassinato de seu pai, data que o marcou profundamente e que é recorrente ao em sua carreira (a tal aposentadoria burlada foi anunciada em um dos aniversários da tragédia). Romance da pedra do reino, justamente sobre a morte de seu progenitor, chega à TV este ano num formato entre especial e minissérie, a partir de projeto de Luiz Fernando Carvalho (que já adaptou sua Farsa da boa preguiça para a telinha).

Tudo isso dá a 2006 um ar de renovação à sua obra. Renovação em torno da qual ele prefere fazer mistério. Do romance novo, fala quase nada. Soa quase como milagre (da Compadecida, com quem ele tem boas relações?) que as imagens - que seguem o mesmo padrão imagético de O romance da pedra do reino - estejam sendo divulgadas na exposição da ABL. Ele se limita a falar em linhas gerais. Prefere arrumar parceiros. Diz que sua literatura segue a trilha aberta por Euclides da Cunha e, para usar uma expressão sua, prosseguida por José Lins do Rêgo, Guimarães Rosa e Glauber Rocha.

- Sempre tive como fonte de inspiração o mesmo sertão mítico. O sertão dos jagunços, majoritariamente nordestino. Assim como o inegável arcaísmo do Nordeste, a conservação de suas condições materiais e espirituais quase da Idade Média. Além, é claro, de sua organização social essencialmente feudal e que preservou essa parcela da nacionalidade de todo o modelo incaracterístico do Ocidente moderno. Tudo isso provocou em nós a quase vertigem de descobrir naquelas vastidões esquecidas, naquilo que Euclides (da Cunha) chamou de rocha viva de nossa raça: um povo afastado no espaço e ainda mais afastado no tempo - diz.

Ao falar das iluminogravuras, Suassuna dá pistas do novo romance, ao situá-las em um certo universo temático:

- São trabalhos que desenvolvi nos últimos anos. O título da exposição, Do reino encantado, remete ao mundo quase irreal dos sonhos messiânicos de Pedra Bonita, Canudos, Juazeiro do Norte. É o nome do conjunto de visões que o sertão me inspirou.

Visões suassuanas

Paraibano de Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa, Ariano Vilar Suassuna nasceu no dia 16 de junho de 1927, filho de Cássia Villar Suassuna e João Suassuna. Na época, seu pai era governador da Paraíba. No ano seguinte, ainda bebê, foi morar na fazendo Acauhan, no sertão, logo depois de o pai deixar o governo. Durante a Revolução de 30 aconteceria, no Rio de Janeiro, o assassinato que marcou a vida da família, que se mudou para Taperoá, ainda na Paraíba.

Foi nessa cidade que ele começou a estudar e assistiu, pela primeira vez, a uma peça de mamulengos e a um desafio de viola. A partir daí, a improvisação passou a fazer parte da sua vida e se tornou uma das marcas também da sua produção teatral.

- O mediavalismo do Nordeste, a característica dominante nas bandeiras das procissões e cavalhadas, toda essa estética popular se encontra nas origens do Movimento Armorial que desenvolvemos desde os anos 50. Pretendo na aula-espetáculo da ABL examinar a formação da cultura brasileira, de modo mais particular a nordestina, a partir de idéias que estão na raiz do Movimento Armorial, um movimento amplo que abrange diversos gêneros, do romance à poesia, à escultura, à música, ao teatro, ao cinema. Tento provar que alguns artistas armoriais conseguem alcançar a ousadia e a renovação da verdadeira vanguarda - diz o autor de Auto da Compadecida.

O processo usado por ele na confecção das iluminogravuras é o seguinte: primeiro produz uma matriz da ilustração e do texto manuscrito com nanquim preto sobre papel branco. Em seguida, faz cópias da matriz em uma gráfica, em off-set. Cada cópia, então, é trabalhada manualmente, colorida a pincel com tintas guache, óleo e aquarela.

Essa faceta de artista plástico de Suassuna passou a ser mais conhecida de seu público a partir de dois álbuns de sonetos escritos por ele na década de 80: Sonetos com mote alheio e Sonetos de Albano Cervonegro. Os dois mostram uma visão suassuana do homem e do mundo.

- Minha relação com o desenho e a pintura vem desde menino, assim como outras manifestações artísticas. Estudei pintura, escultura, piano, ou seja, música, desde aquele tempo. Minha arte era diversificada, mas acabei optando pela literatura. Quando comecei a escrever o Romance da pedra do reino, decidi que eu mesmo faria suas ilustrações, não queria atribuir a função a um outro artista e resolvi fazer as iluminogravuras do livro - afirma Suassuna.

Ariano Suassuna chama a atenção para as fotografias de Gustavo Moura que integram o conjunto da exposição e estarão no livro de Suassana. Disse que o fotógrafo, também paraibano, completa com suas fotos as ilustrações do livro - sobre o qual se recusa a falar, argumentando que ainda não está terminado.

- Nossos trabalhos se casam perfeitamente. Há, de fato, uma única origem nas nossas obras, no domínio dos animais e seres fantásticos, das cores vivas da alma popular. Ou seja, o mesmo amor profundo ao sertão e a suas expressões artísticas. O título da exposição é o mesmo título, ou parecido, ao de um livro dele: Reino encantado. Sobre o novo livro, acho que o momento não é o adequado para falar dele. Vamos ficar apenas no plano das ilustrações. Não gosto de falar de um trabalho que ainda não está pronto - conclui o acadêmico.

 

O BRASIL DE JOÃO GRILO

Alexandre Werneck

A obra de Ariano Suassuna é constantemente remetida à sua armorialidade, à sua relação com seu projeto nacionalista. Mas há uma dimensão a ser observada no autor de Auto da Compadecida e que salta de cada um de seus textos ficcionais, tanto no teatro quanto nos romances. Suassuna tem uma tese sobre o Brasil, tese com vigor de teoria sociológica. É pejada por todo o viés ideológico que pode vir da inclinação anti-republicana e católica do autor, mas isso não o impede de rivalizar - ainda que talvez não intencionalmente - com o chamado ''mito da contradição brasileira'', que aparece em obras como as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Vianna e, antes deles, em Euclides da Cunha. Ele não fecha com teses, digamos, tradicionais sobre ''o problema da modernidade brasileira''.

Para vários desses autores, que inauguram uma tradição que chega até nosso dias, a modernidade e seu modelo racional/legal de relações, baseadas em traços de justiça cega e meritocracia, não conseguiu ser implantada no Brasil em sua plenitude. Há debates sobre diferentes modelos dessa dificuldade (como o conflito entre americanistas e iberistas discutido por Oliveira Vianna ou a idéia de ''homem cordial'' de Sérgio Buarque), mas eles apontam, de certa forma, todos para o Brasil como um país anômalo.

Para Suassuna, entretanto, não é tanto o Brasil que não dá conta da modernidade. É a modernidade que não dá conta do Brasil. O país, para ele, resolveu seu problema não como desviante, mas como ente criativo. É o que aparece no Auto e também em A pena e a lei, conjunto de três peças unidas em uma só e lançadas recentemente pela Agir. Em ambas, os personagens se relacionam com a Justiça de maneira informal, malandra.

O paradigma é João Grilo, aquele que salva aos outros e a si no julgamento que pode mandá-los para o Céu ou para o inferno, apelando para a Compadecida, mãe de Jesus. Não é em justiça que se baseia o universo de Suassuna, a sociedade brasileira - ou o ''Brasil real'', como ele prefere chamar, inspirado por Machado de Assis, opondo-se ao ''Brasil oficial'', falseado, simulacro da modernidade européia. O que move o Brasil, para ele, é a piedade, ou seja, a moral particularista, aquela que remete não para princípios universais e sim para princípios singulares, pessoais. E não há nenhum mal nisso para ele.

O romance da pedra do reino flerta com essa mesma perspectiva. E toda uma visualidade trazida no livro, inspirada pela literatura de cordel, flerta também com essa idéia. Suassuna reencena constantemente o Brasil como uma instância mítica, medieval - que é o lugar próprio da piedade, das santas que aparecem para interceder, das entidades que vêem assassinatos em tocaias e se tornam outros personagens. Daí as iluminogravuras mostrarem tanta coerência com a obra do autor - por mais que ainda não se conheça ainda a obra que elas acompanharão. Esse universo mítico é a maneira como Suassuna consegue mostrar essas relações particularistas como factíveis.

Isso porque em qualquer um de seus textos é essa mitificação - que sempre se torna a própria estética do autor, como quando transforma atores em mamulengos, em A pena e a lei - que desculpa suas desculpas. Sim, porque a lógica de seus personagens é essa, a desculpa, a argumentação. Todos eles mostram que embora uma sociedade enuncie uma moral pétrea, ela nunca é de fato de pedra, tem sempre circunstâncias em que se pode cobrar dela mais humanidade, mais flexibilidade.

 

22/05/2006 - Atualizada em 21/05/2006