Letícia Lins
O GLOBO (05.11.2003)
Rachel de Queiroz criou muitas heroínas em sua literatura. Da estréia, com “O quinze”, que escreveu aos 19 anos, a seu último romance, “Memorial de Maria Moura”, de 1992, a cearense pôs em cena mulheres fortes, a ponto de o crítico Wilson Martins afirmar aos “Cadernos de Literatura Brasileira” do Instituto Moreira Salles que, excetuando-se dois livros - “João Miguel”, de 1932, e ”Caminho de pedras”, de 1937 - “todos os seus romances levam no título o nome das heroínas, mesmo as exceções aparentes”. Uma dessas “exceções aparentes” seria “O quinze”, de 1930, sobre os efeitos da seca no Nordeste e marco do romance regionalista no Brasil, no qual a personagem Conceição dedica-se a “leituras socialistas” e seria uma espécie de alter ego da autora. Rachel, sempre rebelde, abriu com sua literatura e a própria vida caminhos inéditos para a mulher no Brasil do século XX, de tal forma que o presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Alberto da Costa e Silva, afirmou ontem que ela foi “a figura feminina mais importante do Brasil no século passado”.
Há exatos 26 anos, em 4 de novembro 1977, Rachel tomava posse na ABL, rompendo a restrição que existia na Casa de Machado de Assis desde a fundação. Foi com a ajuda da escritora que o fardão teve a versão feminina. “Criou-se uma polêmica em torno da roupa, se deveria ser calça ou vestido. Então achei que deveria tomar a frente. Decidi usar longo”, contou certa vez a escritora, que morreu ontem em casa, a poucos dias de completar 93 anos, no próximo dia 17.
Rachel morreu como sempre quis: tranqüilamente. Vítima de um infarto fulminante durante a madrugada, ela foi encontrada morta de manhã, por volta das 6h. Na véspera, sua irmã Maria Luíza Salek, de 72 anos, a quem Rachel tratava como filha, esteve com ela até 20h. “Estou ótima”, foi a última coisa que Maria Luíza ouviu de Rachel. Sua amiga Rosita Ferreira de Souza, que cuida da Fazenda Não me Deixes, em Quixadá, no Ceará, e está passando uma temporada no Rio, disse que a escritora falou muito do marido à noite, o médico Oyama de Macedo, que faleceu em 1982 e foi o grande amor de sua vida, com quem ela viveu 42 anos.
- Rachel realizou todos os seus sonhos, a não ser o de constituir uma grande família - disse Maria Luíza, que ajudou Rachel a escrever as memórias “Tantos anos”, de 1998.
A escritora sempre evitar falar de sua vida, dos seus sentimentos e do amor que descobriu ao lado de Oyama depois do fracasso do primeiro casamento, com o jornalista José Auto da Cruz Oliveira, de quem corajosamente se separou em 1939 e com quem teve sua única filha, que morreu aos 18 meses. Da vida pública, como a sua passagem pelo Partido Comunista e suas polêmicas ligações com os líderes do golpe militar de 1964, ela não tinha medo de falar.
A autora de “Dora, Doralina” - que lançou em 1975, sobre a paixão avassaladora de uma viúva por um comandante de navio, e que até “Maria Moura” ela considerava seu melhor livro - costumava reclamar de seu ateísmo. “Não consigo acreditar em Deus. Isso é um sofrimento muito grande, porque nos momentos de extrema dificuldade me sinto muito só, sem ter a quem apelar”, disse numa entrevista.
Quatro de seus livros foram adaptados para a televisão e dois estão para virar filme: “O quinze”, em fase final de montagem, com direção de Jurandir Oliveira, e “Maria Moura”, que deve ficar pronto também em 2004, com direção de Leilany Fernandes.
Sempre ativa na vida política, Rachel nunca deixou de escrever crônicas. Ditava para a irmã os textos que publicou até o início deste ano no jornal “O Estado de S.Paulo”. Os últimos livros que lançou eram para crianças. Em nota, o presidente da República em exercício, José Alencar, afirmou que Rachel foi uma “das mais lúcidas observadoras da cena social brasileira, que soube reproduzir com maestria na sua vasta e importante obra”. Na Câmara dos Deputados, fez-se um minuto de silêncio em sua homenagem e, à tarde, o Senado aprovou voto de pesar pelo falecimento da escritora, apresentado pelo senador Tasso Jereissati, que veio ao velório na ABL com o governador do Ceará, Lúcio Alcântara, e o senador Marco Maciel. O ministro da Cultura, Gilberto Gil, destacou, da África, que Rachel foi “uma mulher à frente do seu tempo”.
A escritora foi velada sobre uma rede - como boa nordestina, sempre dormia em rede - e o enterro será hoje, às 9h, no Cemitério São João Batista. Ficará ao lado do marido e não no mausoléu da ABL.
Depoimentos
“Foi ela quem praticamente inaugurou a literatura do Nordeste e, aos 80 anos, parecia uma menina quando escreveu sua obra-prima, ‘Memorial de Maria Moura'. Foi a figura feminina mais importante do Brasil no século passado”
ALBERTO DA COSTA E SILVA presidente da ABL
“É dessas perdas irreparáveis, porque o romance nordestino começa com o ‘O quinze’, muito antes de qualquer outro escritor enveredar por esta trilha, como Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Conviveu com as revoluções e as grandes mudanças do século XX”
IVAN JUNQUEIRA acadêmico
“Era uma pessoa muito gozadora, inteligente e sensível”
CARLOS HEITOR CONY acadêmico, lembrando os tempos de Rachel em “O Cruzeiro” e ele em “Manchete”
“Ela buscava no sofrimento da seca a visão do mundo e do homem”
JOSÉ SARNEY senador e acadêmico
“Era uma mulher fortíssima, fez a vida como lhe deu na cabeça: separou para se casar com alguém por quem tinha se apaixonado, quando isso não batia bem na sociedade. Teve um caminho fascinante como mulher”
HELOÍSA BUARQUE DE HOLLANDA editora
“Ela permaneceu sempre visceralmente cearense”
LÚCIO ALCÂNTARA governador do Ceará
“Morreu a rainha da literatura brasileira”
ARNALDO NISKIER acadêmico
06/06/2006 - Atualizada em 05/06/2006