Conheci Ulysses Guimarães no Palácio Tiradentes, eu, deputado da UDN, e ele, do PSD, presidente da Câmara. Jovem, tinha um ar severo, que lhe dava uma impressão de certa distância, e inspirava a todos nós grande respeito. Os anos lhe amaciaram os gestos e os olhos.
Gozava da fama de ser grande articulador e firme nas suas convicções. Cedo ingressou no chamado sacro colégio, que era composto dos grandes nomes do PSD.
Os fatos, em 1964, o encontram nessa posição. Diante de suas circunstâncias, como dizia Ortega y Gasset, agiganta-se, ocupa o vazio. Articula, conversa, resiste e, pouco a pouco, transforma-se no grande restaurador da democracia.
Ulysses era um exímio costurador e alinhavava com extrema perfeição a conspiração da boa causa. Muitas vezes, já aqui em Brasília, depois de uma palavra, de um discurso, de um gesto duro, ele aparecia em nossa casa, eu, presidente do PDS. Vinha convidar-me para conspirar, queimar etapas na transição “lenta, gradual e segura”. Éramos bons amigos.
Com a minha renúncia ao PDS, a catequese de Ulysses passou a ser diária, agora dividindo outras reuniões com outros companheiros. O seu quarto, de simplicidade franciscana, no Hotel Bristol, passou a ser um “aparelho”. Dali saíram as estratégias que levaram à eleição de Tancredo Neves.
Ulysses sempre soube atuar sobre os núcleos de decisão. Ele sabia o momento preciso de agir. Era o articulador experimentado, circulando entre todos os partidos.
Até nossos desencontros foram enriquecedores. Em silêncio, civilizadamente, diminuindo nossas longas conversas e não aumentando o tom de nossas palavras. Éramos remanescentes de um tempo raro que começava a desaparecer. Daquela política em que o intelectual tem as mãos dadas ao político, do pensar coletivo, do “trabalhar para todos”, como dizia Tiradentes.
Naquele outubro de 1992, foi difícil pensar numa paisagem política do Brasil sem Ulysses Guimarães. Ele era a Câmara. Ele era o símbolo do PMDB. Não falava do passado, só discorria sobre o futuro.
Seu pai, ao colocar-lhe o nome, foi buscá-lo naquele Ulysses que atravessou tantos perigos e tantas vezes foi ao mar.
Nosso Ulysses sempre gostou de associar a política ao mar. Adotou o lema de Pompeu, Sagres, Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso.” Ele não podia passar aquela noite deitado no silêncio de Angra dos Reis. A política exigia o outro dia e mais o outro, até a eternidade. Era preciso navegar. Ele navegou no “Mar dos Antigos”, a enseada em que venceu a última de todas as suas tempestades, a da própria vida. Foi assim que ele entrou para o Centenário que agora se comemora e para a História.
Du Bellay, poeta da Plêiade, tem um alexandrino que diz tudo sobre a vida do outro Ulysses e do nosso Ulysses: “Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage.” (“Feliz aquele que, como Ulysses, fez uma bela viagem.”). Viveram todos os perigos, mas saíram íntegros para sempre. Hoje ele é pedra, estátua entre os maiores estadistas do Brasil.