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Antônio Cândido, por Marcos Vilaça

 

Pedro do Coutto

A arte, a ciência, a cultura como conseqüência são, no fundo, a passagem do ser humano pelo mundo, seu eco, seu rastro, sua sombra. À frase, originalmente relativa à cultura, eu acrescento a arte e a ciência, os dois fatores que a formam, a propósito do monumental "Formação da literatura brasileira", de Antônio Cândido, revisto em 2006 pelo seu autor.

Reeditado agora, em 2007, pela Academia Brasileira de Letras e a mim enviado, com o espírito construtivo e a fidalguia de sempre, pelo ministro Marcos Vilaça, presidente da ABL, Casa de Machado de Assis. Creio, francamente, que a Academia era uma antes, passou a ser outra com Marcos Vilaça. Poucas pessoas são capazes de expor com tanta emoção a cultura produzida pelos outros. Ele, notável qualidade, vibra com a criação intelectual alheia como se fosse de sua própria autoria.

Sob este aspecto assemelha-se bastante ao grande amigo comum José Aparecido de Oliveira, embaixador do cristianismo no mundo de hoje. Ambos são seres humanos raros. Cada vez mais raros, importante acrescentar. Empenhados na tarefa de edificar novas etapas da existência, ambos são aproximadores por excelência do gênero humano. Falei em cristianismo? Pois é. Em sua obra, Antônio Cândido destaca que, na criação literária, cristianismo é concebido como fraternidade. Não como manifestação clerical. Perfeito. Interpretação correta.

Inclusive porque Jesus Cristo não propôs religião alguma além da judaica. Nasceu judeu e morreu judeu. O cristianismo foi criado pelo imperador romano Constantino trezentos e cinco anos depois do desfecho da cruz, em Jerusalém.

A iniciativa de Vilaça, reeditando Antônio Cândido, me leva a sugerir que reedite também outro monumento da literatura: "A história da literatura ocidental", de Oto Maria Carpeaux, oito volumes, escritos no início das tardes na redação do "Correio da Manhã", antes da escolha do editorial do dia seguinte, sem recorrer a qualquer arquivo. Perguntei a ele sobre o ritmo: meu arquivo está na minha memória, respondeu, tocando levemente a testa com a mão direita.

Antônio Cândido destaca observações essenciais sobre literatura brasileira, mas que se ajustam à produção literária como um todo. Expressão racional da natureza. A busca do natural levando ao império da razão. A poesia é a arte da imitação. A imprensa é um marco da literatura. E, referindo-se à obra do padre Antônio Vieira, que foi figura de destaque no império, mas que é alvo de restrições de Antônio Cândido. Usava o adjetivo enfático, forte, nem sempre lógico, como a tentativa de solução para o pensamento. Referiu-se à imprensa, um marco. De fato. Ela divide a história entre a era do relato e a do registro. "A galáxia de Gutemberg", belo definitivo título de Marshall McLuhan, década de 1950.

Com a imprensa de Gutemberg, surgiu a primeira edição completa da Bíblia, reunindo numa só os 74 livros que a compõem. Com a imprensa, puderam surgir os arquivos organizados, retornando ao passado, e garantindo a eternidade de centenas de milhares de obras que representam e sintetizam a aventura do pensamento, no seu vôo livre por sobre séculos, e, nos tempos modernos, os centros de cultura e memória.

Entre nós, o Banco do Brasil foi pioneiro e abriu caminho para uma série de outros. O de Furnas, estatal de energia elétrica, por exemplo, do Tribunal de Contas do Rio, que em justa iniciativa tem o nome do conselheiro Humberto Braga, um intelectual, um construtor de pensamentos e traduções da realidade. Fundamental tudo isso.

Porque, no fundo, não se pode construir e projetar nada para o presente e para o futuro sem memória do passado, sem cultura, sem recorrer à arte, sobretudo porque a arte será eternamente uma ruptura. Suas obras não se repetem, como ocorre com experiências científicas. São sempre únicas, conseqüência de um gesto solitário e solidário do autor.

É no vôo livre que a impulsiona e envolve que, de forma tanto direta quanto indireta, o pensamento humano se inspira, avança, evolui. Daí a extraordinária importância dos artistas e daqueles que, como Antônio Cândido, são capazes de traduzi-las e colocá-las, democraticamente, para nossa percepção. Porque na aventura da arte, todos vamos juntos, vivendo a nossa própria aventura.

Tribuna da Imprensa (RJ) 15/3/2007

15/03/2007 - Atualizada em 14/03/2007