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Furtado em Yale: Relatos de um jovem admirador

 

Preâmbulo

Fiz graduação em economia na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, de 1960 a 1963. Lembro-me vivavemente de Francisco Iglésias, professor de história econômica, nos indicando a leitura do recém-publicado Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado. Guardo até hoje o exemplar que então comprei deste livro, com trechos e mais trechos sublinhados em lápis vermelho, além de inúmeras anotações à margem. Mal podia imaginar que em pouco tempo iria conviver por um ano inteiro com o autor deste clássico da literatura econômica brasileira.

No final de 1963, fui aprovado em concurso para o programa de pós-graduação lato sensu do Centro de Aperfeiçoamento de Economistas (CAE) da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro1. O curso ia de janeiro a junho de 1964, e destinava-se a preparar os alunos para programas de pós-graduação nos EUA. Mario Henrique Simonsen ministrava quase todas as aulas, mas Werner Baer e João Paulo dos Reis Velloso também foram meus professores. Concluído o programa do CAE, por indicação de Werner Baer fui selecionado pela Universidade de Yale para fazer o mestrado e, no ano seguinte, o doutorado em economia.

Quando parti para os EUA, no final de agosto de 1964, assumi o compromisso com minha mãe viúva, Maria Jesus de Lisboa Bacha, que residia em Belo Horizonte, de lhe escrever duas cartas por semana, compromisso que cumpri ao longo do primeiro ano em Yale. Minha mãe guardou essas cartas que, após seu falecimento, me chegaram às mãos.

Minha mãe era culta e politizada, por isso, sentia-me à vontade para comentar com ela minhas impressões sobre o curso, os professores, a universidade, os EUA, bem como sobre a conjuntura política e econômica no Brasil. Como eu, ela também era fã de Celso Furtado, por isso, são muitas as referências nessas cartas a meu relacionamento com ele, tanto de natureza pessoal, quanto política e profissional.

Transcrevo neste artigo os excertos dessas cartas em que faço referência a Celso Furtado. Eles revelam aspectos que creio inéditos de sua estada em Yale, vistos pelos olhos de um jovem admirador.

As cartas foram escritas em New Haven, de setembro de 1964 a junho de 1965. Excetuam-se as duas últimas, de julho de 1965, escritas em Londres, onde estava num summer job na Organização Internacional do Café. Fiz pequenas correções gramaticais e coloquei entre colchetes algumas explicações. Em notas de rodapé, além das referências bibliográficas, agreguei comentários que ajudam a entender o contexto de meus relatos.

Cheguei em New Haven, Connecticut, onde se localiza a Universidade Yale, em 1º. de setembro de 1964. Tinha então 22 anos, completados em fevereiro daquele ano. Alojei-me em apartamento dividido com Dave Barkin, aluno americano do doutorado em economia, e Clóvis Cavalcanti, meu colega no CAE que também havia sido aceito no programa de mestrado.

Sabia que Celso Furtado, cassado pela ditatura militar2, já havia lá chegado, tendo aceito a posição de Visiting Fellow do Departamento de Economia da universidade. Mal podia conter a vontade de conhecê-lo pessoalmente.

Cartas

01/09/1964: Dave [Barkin] me disse que Celso Furtado já está por aqui, mas não localizei seu telefone. Disse-me Dave: “ele o deve estar guardando em segredo, porque é uma pessoa muito famosa aqui”.

10/09/1964: Esqueci-me na última carta de um fato tão importante como ter conhecido Celso Furtado. Ele já havia chegado uma semana antes de mim, e estava trabalhando em seu escritório. Na verdade, me atendeu afavelmente e conversamos sobre generalidades por uma meia hora. Achei-o magro e algo abatido, mas é um bom papo. Ontem voltei lá com o Clovis [Cavalcanti] e desta vez ficamos de conversa fiada por mais de uma hora. Um dia desses ele já está convidado para jantar aqui no apartamento (coitado, sai do Brasil para entrar numa fria dessas!); em todo caso, Dave não é tão péssimo cozinheiro quanto se poderia imaginar!

Alguma coisa sobre o pensamento de Furtado: o livro seu que saiu há pouco, Dialética do Desenvolvimento, foi escrito quando o Jango [João Goulart] queria dar o golpe, para decretar estado de sítio, e tinha por objetivo alertar a esquerda para não embarcar no oportunismo jango-brizolista sem quaisquer raízes históricas3. Naquela oportunidade, procurara formar uma frente ou movimento de esquerda para barrar o peleguismo – com isso estaria inclusive de acordo o San Tiago Dantas -, mas não deu certo (fui em que lhe comunicou o falecimento de Dantas, que repercutiu bastante aqui; o New York Times lhe dedicou duas colunas por dois dias seguidos, noticiário e retrato).

Na Sudene, está certo de que [os militares] não encontrarão qualquer coisa4. Quanto à corrupção, ele próprio tinha uma espécie de serviço próprio de espionagem, e ao menor indício de malandragem mandava abrir inquérito. Ficou satisfeitíssimo com a vitória de [Eduardo] Frei [Montalva] no Chile (como todos nós e o [Lyndon] Johnson também), salientando que a candidatura de Allende não tinha qualquer viabilidade econômica. Como o Brasil, e mais agudamente ainda, o Chile não pode sair da estagnação sem contar com uma boa dose de crédito externo, que Allende não poderia obter.

Para Guy [de Almeida, cunhado] e José Maria [Carvalho, parente] ficarem de água na boca: Furtado vai intervir num seminário: Economics 204 – Introduction to Latin American Studies – Mr. Baer, Mr. Dix, Mr. Furtado, Mrs. Nash, Mr. Rogler, Mr. Snyder / An interdisciplinary seminar for students whose geographical area of specialization is Latin America. The contributions of various disciplines to the analysis of Latin American society and culture. History and the social sciences are emphasized.

[Cópia escaneada da carta de 10/09/1964, a única que escrevi à máquina]

 

22-23/09/1964: Domingo fizemos um tour por recantos pitorescos de Connecticut, no carro de Dave. Além dele, Celso Furtado, Werner [Baer], Clóvis e eu. Foi bastante agradável, desde o bate-papo, passando pela paisagem, até uma típica pequena cidade da antiga colonização na Nova Inglaterra. Agora que o outono está batendo às portas, é extremamente bonito notar a transformação da vegetação nos campos, com as árvores tendo suas folhas amareladas, depois avermelhadas, num processo multicor que nunca antes tinha visto no Brasil. Também paramos em barracas à margem da estrada, onde os fazendeiros locais vendem algo de sua produção de frutas, para comprar maçãs e ameixas deliciosas, além de um galão de cidra (suco de maçã), também muito bom. Tiramos uns poucos retratos à beira de um lago. Quando ficarem prontos, o que não deve ser logo, os enviarei para você.

[No retrato anexado, da esquerda para a direita: Celso Furtado, Clóvis Cavalcanti, eu e Dave Barkin. O retrato foi tirado por Werner Baer]

26-27/09/1964: Tive nessa semana uma reunião no Clube de Economia, em que fiquei conhecendo mais gente, e depois fui jantar com Celso Furtado que acaba de escrever um artigo sobre Obstáculos Políticos ao Desenvolvimento Econômico no Brasil5, e hoje uma volta por outras regiões vizinhas do Estado com o Baer.

02-03/10/1964: Celso Furtado já tinha um outro recorte, que inclusive dizia que o outro concorrente, Carlos Lacerda, teve 6 dos 130 votos da turma! [trata-se possivelmente da eleição de Furtado para patrono ou paraninfo de formandos em graduação].

Mandei ontem para o Guy o último trabalho do Celso. Estava tão entusiasmado com o ensaio que só depois de enviá-lo é que realizei ter sido talvez imprevidente endereçar para a casa do Guy quando poderia mandar aí para casa – e passei essa manhã chateado por causa disso6.

9-10/10/1964: Furtado foi para Califórnia hoje. Semana que vem, volta para lá de novo. Se quisesse, passava o tempo todo passeando de um lado para outro, atendendo a convites que chovem de todo lado.

16-17/10/1964: Celso Furtado comprou um Corvair-65 que é uma beleza de carro, com umas formas tão aerodinâmicas que parece que até vai levantar voo (ah, eu com um carro desse no Brasil!). Ele está todo feliz com a edição americana de seu livro, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, que acaba de sair. Nunca deu tempo de convidá-lo para jantar. Vamos ver se na outra semana a gente arruma um dia.

20-21/10/1964: Roberto Campos está em Washington, e com ele [Mario Henrique] Simonsen e [João Paulo dos Reis] Velloso, meus professores do CAE, que talvez venham aqui na quinta-feira quando terminarem o blá-blá-blá na Capital. Ah, o que não daria para ver uma “briga” do Simonsen com o Furtado!7 Sou até capaz de chamar os dois aqui em casa na quinta à noite, mas acho que ficava meio sem graça.

24-25/10/1964: Acabou não dando tempo de o Simonsen e Velloso virem aqui. Mas agora tem mais coisa para ler, pois eles deixaram com o Werner cópia do plano de governo, dois volumes com umas 800 páginas8. O que arrumaram em Washington não fiquei sabendo.

07/11/1964: Escreverei ao Guy logo que sair o novo ensaio do Furtado, sobre o processo revolucionário na América Latina9. Ele agora está trabalhando numa tipologia das economias latino-americanas10 para depois sair para uma teoria da estagnação que vai dar o que falar11.

Quinta-feira, ele, Clóvis e eu fomos jantar – bacalhoada com certeza -- na casa de um português, naturalizado americano, acho que até vereador daqui, um sujeito muito simpático [Cristiano Rendeiro]. E lá ficamos até às 22 horas, com um bate-papo sobre revoluções na África e golpes de estado na América Latina.

No mesmo dia, tinha almoçado no restaurante da universidade com o Furtado e ele está com a mesma impressão que eu, de que o tempo está voando; eu, quando penso que já um quarto do ano letivo foi embora, mal posso acreditar; ele disse que a maior parte do tempo passa recusando convites ou se preparando para e atendendo a convites irrecusáveis, para estudar mesmo que é o que ele queria mal sobra tempo. Ele está planejando ficar mais um ano nos EUA, outro na Europa e depois regressar ao Brasil.

24/11/1964: O New York Times de hoje traz a notícia da concessão de habeas-corpus ao Mauro Borges12; e o de ontem noticiava o empréstimo de US$500 milhões ao Brasil, dependendo de entendimentos posteriores. Em geral, o tom é de otimismo quanto à situação econômica mas de pessimismo quanto às perspectivas políticas. Celso Furtado não parece acreditar numa possível reviravolta no plano político, como não acredita no sucesso da política econômica. Ele acha que a ideia do [Roberto] Campos é repetir o êxito do “estado associado” com os EUA, tipo Canadá, o que julga não ser factível. Mas julga que um estado semipolicial, do tipo que agora temos, possa durar “indefinidamente” (vide exemplo de Salazar, além do Estado Novo que só caiu por causa da guerra).

04-05/12/1964: Se antes de enviar carta para o Guy tivesse lido o New York Times não teria dito nela que achava que o Castelo [Branco] agora teria que apelar para o salazarismo, com a resistência que eu antecipava do PSD [Partido Social Democrático]. Os 190 v. 140 a favor da intervenção [do governo federal em Goiás] liquidaram com o último pavio liberal que esse “estado de coisas” estava a sustentar. Celso Furtado também se surpreendeu um pouco: que diabos, um mínimo de hombridade era de esperar mesmo desse Congresso! Celso diz que agora não quer mais nem saber de notícia do Brasil. Eu ainda quero ver, de fora, se esse negócio de desenvolvimento tipo “estado associado” (olha que dólar parece que está entrando), com um governo semipolicial e impopular (o “semi” e o “im”, no lugar do “anti”, vão por conta do Campos e do ‘mestre’ Simonsen) funciona, e vamos comparar com o que o Frei faz no Chile.

05/01/1965: Ontem, assisti à fala do Johnson na casa do Furtado13. Na próxima lhe conto.

09/01/1965: Na 2ª. feira conheci a senhora do Celso Furtado, uma simpática argentina que aparenta ser mais velha do que ele (mas quem diz que ele tem 44 anos?), e seus dois filhos, de 15 e 10 anos. O discurso do Johnson foi muito bom – eta texano para ter ‘presença’ – e quando estávamos lá bebericando uns whiskies chegaram dois brasileiros, um deles recém-vindo de Cortina d’Ampezzo onde passara o natal com JK [Juscelino Kubitschek] – os ‘asilados’ se comunicam, sim senhora. Ele trouxe um retrato do Nonô [apelido de JK] (“olha como ele está bem disposto”) que eu vou lhe contar, o homem está é acabado, mais murcho que o Celso antes de a família dele chegar14.

Puxa, eu não tinha sabido do papelão do Sette Câmara15 não indo, de medo, ao casamento da Marcia [Kubitschek], de quem era padrinho. Parece que a gorilada circulou uma ordem no Itamaraty, proibindo o pessoal de aparecer lá.

19-20/01/1965: Ontem, Furtado telefonou para nos convidar para jantar em sua casa na sexta-feira. Ao que parece, Werner e outras pessoas também vão.

23/01/1965: No jantar de Furtado tinha mais gente que pensava. O jantar foi à americana, precedido de uma batida ‘legítima’, regado a uísque e rebatido com vinho. Todo mundo do departamento, um enxame de economistas: Mr. e Mrs. [Gus] Ranis, ele vice-diretor do Centro [de Desenvolvimento Econômico] (o diretor, [Lloyd] Reynolds, está em Roma); Mr. e Mrs. [Wilt] Chamberlain, ele professor do departamento, ela secretária-executiva do Centro; Inês, a secretária equatoriana do Celso e seu marido; economista iugoslavo; Carlos Diaz, cubano, meu professor de Análise Econômica; um italiano [Andrea Maneschi], econometrista, que está ‘traduzindo’ para a matemática um modelo do Celso; Werner e nós três do apartamento [eu, Clóvis e Dave].

01/02/1965: Almoço hoje para o qual Werner convidou Furtado, Clóvis e eu para discutirmos com a organizadora da excursão anual de 100 brasileiros (estudantes universitários) aos EUA, sobre como deveria organizar-se o programa de 5 semanas, para provocar o ‘rendimento’ máximo. Há algum tempo atrás tinha almoçado com a outra responsável pelo programa, também convocado pelo Werner. Parece que agora esse povo está ficando mais inteligente para provocar o good-will brasileiro. Corta conferência e põe esse pessoal para viver a América, sentir seu povo, conversar com estudantes americanos – que é a melhor política de boa-vizinhança possível.

14/02/1965: Furtado a uma hora dessas já deve estar em Londres, para uma temporada de duas semanas na Inglaterra e outra semana na França, segundo ele sem tempo nem para respirar.

14/02/1965: O Antonio [Bacha, meu cunhado e comerciante] me põe num aperto [ao perguntar sobre qual melhor estratégia comercial a seguir em função das perspectivas a curto prazo da economia brasileira]. Furtado acha que as coisas vão de mal a pior e que a tendência é ficarmos numa estagnação ‘portuguesa’. Pelo jeito que as poucas notícias chegam aqui, entretanto, a impressão que se tem é que a fase mais dolorosa já passou, com os principais focos da inflação de custos já atacados. A procura deve reagir agora, com os novos níveis salariais que, se o figurino continuar sendo seguido, não deverão alcançar a elevação total do custo de vida. De um modo muito geral, a política mais racional parece ser reduzir a margem de lucro...já que, estando a procura contraída, o único modo de conseguir vender a mesma coisa é não aumentando o preço à mesma taxa que antes.

10/03/1965: Estou voltando agora de uma conferência do Thomas [Clifton] Mann [Subsecretário do Departamento de Estado para América Latina]16, o inefável, sobre América Latina. Atente para os comentários: Werner, “como é que vou defender a política externa americana no Brasil? ”; Diaz, “parece até caricatura”; [Gerry] Helleiner, “é de temer pela sorte do mundo, se ela depende de sujeitos assim”; Furtado, “☹”; eu, “pensava que era ruim mas nunca tanto assim”.

19/03/1965: Quarta, Furtado falou no Seminário Interdisciplinar Latino-Americano sobre problemas agrários do Nordeste17. O homem é realmente grande, Da. Maria!

28/04/1965: Saiu, afinal, a [formulação matemática da] tese estagnacionista do Furtado Não gostei [porque me pareceu empobrecedora]18. Quero ver se o tal do modelo matemático, com que o computador estava engasgando, vai funcionar. Tenho lá minhas dúvidas. Acho que esse não adianta lhe mandar, porque a parte nova está formulada em termos de modelos econômicos bastante complicadinhos, exigindo um conhecimento bastante profundo da teoria econômica do crescimento para entender (e descobrir os defeitos na estrutura lógica...). Sem embargo, a parte histórica é excelente19.

11/05/1965: Fui jantar domingo na casa do Furtado (a mulher dele, simpaticíssima, chama-se Lucía, descobri enfim). O Díaz me apanhou aqui no apartamento, em seu Volks, e lá estavam mais um casal de brasileiros, que não conhecia; [Cristiano Rendeiro] com a senhora; Clóvis e Luiz Sergio [Gadelha Vieira] e senhora. Este último é também um ex-aluno do CAE que chegou aqui no segundo semestre.

No fim, ficamos só eu e Díaz, e Furtado estava com a corda toda – foi um papo dos mais divertidos que já tive. Sobre Editos de Caracala, filosofia de Epíteto, e outros do estilo, evocados pela invasão [pelos EUA] da República Dominicana. É a mais recente teoria do Helio Jaguaribe (que está em Harvard), que a Pax Americana que se prenuncia sobre o continente representa para o intelectual latino-americano o que a Pax Romana significou para os filósofos gregos. Também o anúncio de uma nova revista, Panorama, que deverá ser impressa simultaneamente em três capitais sul-americanas, mas não no Rio, obviamente20.

Sou mesmo capaz de comprar o Renault-61 da mulher do Furtado. Preciso só ver um problema de vazamento de óleo – na verdade ‘espirramento de óleo’ – que Furtado diz ser comum em Dauphines21.

08/07/1965 (Londres): Ontem fui à embaixada do Brasil. Falei com Mrs. Raquel Braum, a mim indicada pela Sra. Maria Rodrigues, que trabalha aqui em Londres (e cujo marido, Jacyr Rodrigues, entrou na lista dos cassados). Era para ver escola para o Mario, filho do Celso Furtado, na Inglaterra. Furtado está indo para a França em fins de agosto e me pediu para olhar isso, que o cara que estava providenciando caiu na mole. Ontem recebi carta dele, agradecendo pelo que já fiz e anexando cópia de carta que ele enviou a uma agência educacional que eu lhe indicara. Terça, irei na agência para ver o que há. Também já escrevi a outra agência, além de pedir a essa senhora na embaixada que olhe o caso.

Furtado termina a carta me recomendando: “Não deixe de dar o seu passeio em Cambridge. Para um Yaleman é uma experiência essencial no exercício da modéstia”22. Farei isso nesse fim de semana. Já tinha escrito à Joan Robinson, professora de Cambridge, a mais famosa economista do mundo, mas sua housekeeper me mandou dizer que ela está em Cuba no momento, possivelmente (isso por minha conta) doutrinando o Fidel na linha chinesa... Mas assim que ela voltar, chego lá de novo porque faço questão de a conhecer.

Outro dia, conheci um outro famoso da profissão, Dudley Seers, com a desculpa de lhe entregar o último paper do Furtado (edição inglesa revista), para ver se o Oxford Economic Papers o publica23.

14/07/1965 (Londres): Cambridge é outro lugar que gostaria que você [minha mãe] fosse, pena é não ter guided tours, com que Oxford é tão bem servida; mas é simplesmente indescritível. Vou escrever para Furtado que assim também já é exercício de modéstia demais...

Epílogo

Em agosto de 1965 Furtado radicou-se na Europa, vinha ocasionalmente ao Brasil mas somente retornou em definitivo ao país no final da ditatura militar. Eu concluí o doutorado em Yale em 1968, passei um ano no Chile e voltei ao Brasil em 1969. Em 1974, estava na Universidade de Brasília. Encontrei-me com Furtado em reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Recife em julho daquele ano. Mostrei-lhe então a fábula que havia escrito sobre o reino de Belíndia24. Ele se entusiasmou com o texto e o enviou para o semanário de oposição Opinião – onde a fábula foi publicada com grande destaque, tendo enorme repercussão. Depois disso, voltamos a nos encontrar no governo Sarney, ele como Ministro da Cultura e eu como presidente do IBGE. Continuamos a nos ver e a dialogar sobre o Brasil até seu falecimento em 2004.

1 O CAE foi o predecessor da atual Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.

2 Com a edição do Ato Institucional n. 1, de 09/04/1964, Furtado foi incluído na primeira lista de cassados, perdendo seus direitos políticos por dez anos.

3 Furtado foi Ministro do Planejamento do governo de João Goulart de setembro de 1962 a junho de 1963. Na introdução ao livro, escrita em janeiro de 1964, Furtado diz: “Esse esforço, no que tem de fundamental, foi realizado em tempo extremamente reduzido: os dias que se sucederam à tentativa de instauração do estado de sítio no país, em setembro passado”. In: C. Furtado, Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, junho 1964, p. 10.

4 Furtado foi o idealizador e o primeiro superintendente da Sudene, de 12/1959 a 03/1964 (exceto durante o período em que esteve licenciado para exercer o Ministério do Planejamento).

5 Cf. Celso Furtado, “Political obstacles to the economic development of Brazil”. In: Claudio Veliz, org., Obstacles to Change in Latin America. Londres: Oxford University Press, 1965, pp. 145-161.

6 Meu cunhado, Guy de Almeida, era jornalista e foi perseguido pela ditadura militar, ficando exilado por mais de uma década.

7 A “briga” a que me refiro seria sobre a política econômica da ditadura militar, da qual Simonsen era um dos formuladores, e Furtado um dos principais críticos.

8 Trata-se de Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica, Programa de Ação Econômica do Governo 1964-1966. Documentos EPEA n. 1. Novembro 1964.

9 Não consegui localizar tal texto na bibliografia de Furtado.

10 Deve tratar-se do livro Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, citado na nota 6.

11 Ver nota 20 para a referência bibliográfica.

12 Governador de Goiás, acusado pelo governo brasileiro de “armar Goiás para a reação”, segundo o Jornal do Brasil, como relato em carta para minha mãe de 18/11/1964. Foi deposto pelo governo militar no final de novembro.

13 Trata-se do discurso perante o Congresso em que Johnson anunciou seus objetivos para a chamada Grande Sociedade.

14 Sobre a evolução do estado de espírito de Furtado em Yale, em 15 de outubro de 1964 escreve ele em seu ‘diário intermitente’: “Hoje considero minha vida totalmente perdida, no sentido de que não posso recuperá-la...Isso poderá parecer uma fantasia de exilado, em dias de outono, mas é uma dura realidade”. Em 2 de janeiro de 1965, já com sua família em Yale, o tom muda inteiramente: “Estou levando a vida que sempre desejei: estudando, pensando, escrevendo. ” Cf.: C. Furtado, Diários Intermitentes, 1937-2002. Cia. das Letras, 2019, pp. 224 e 227.

15 Diplomata, havia sido chefe da Casa Civil de JK, e em 1964 era Embaixador do Brasil junto à ONU.

16 Autor da chamada Mann Doctrine, segundo a qual os EUA não interviriam contra ditadores que fossem favoráveis aos interesses econômicos dos EUA, mas interviriam contra líderes comunistas independentemente de suas políticas.

17 Imagino que a palestra se tenha baseado no texto “O processo revolucionário no Nordeste”, em C. Furtado, Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Fundo de cultura, junho 1964, pp. 136-173.

18 Trata-se de “Um Modelo Simulado de Desenvolvimento e Estagnação na América Latina”, por

Celso Furtado e Andrea Maneschi, publicado na Revista Brasileira de Economia 22(2), 1968, pp. 5-32. Ver nota 22 para referência à formulação original de Furtado.

19 Conforme desenvolvida em Celso Furtado. Development and stagnation in Latin America: A structuralist approach. Studies in Comparative International Devopment 1, 1965, pp. 159–175.

20 O projeto desta revista não foi para a frente.

21 Imagino ter deixado de comprar o carro porque, em vez de ir passar o verão em Washington, como então planejava, terminei indo para Londres.

22 Cambridge foi fundada em 1209, já Yale somente em 1701!

23 Trata-se de “Development and stagnation in Latin America: A structuralist approach}”, citado na nota 20.

24 "O rei da Belíndia, o economista visitante e o produto interno bruto", Opinião (Rio de Janeiro), 19 Agosto 1974, pp. 14-5. Versão revista, com o título: "O rei da Belíndia: uma fábula para tecnocratas", em E. Bacha, Belíndia 2.0. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, pp. 33-38.

 

Portal da ABL, 03/06/2020