Marcos Vinicios Vilaça
Os rios me acompanham a vida. Nasci, à beira do Tracunhaém, em Nazaré da Mata, zona da cana-de-açúcar, terra de engenhos que fizeram época na história sócio-econômica do nordeste brasileiro. Criei-me em Limoeiro, a 70 quilômetros do Recife, às margens do Capibaribe, «espelho do meu sonhar», «papa-estrelas», como desse rio falaram os poetas. Rio do agreste pecuário de Pernambuco, minha província. Considero Pernambuco o umbigo do mundo. Não sou apenas pernambucano, sou pernambucanista E ortodoxo. Esse rio banha o Recife, onde me fiz gente. E por fim, agora também sou morador, além do Recife, da cidade do Rio de Janeiro. Mais um rio. Sou um homem-margem. «Terceira margem»...?
Nascido em 1939, no ano vindouro me jubilarei no serviço público brasileiro. São 50 anos de atividades já computados. Passei por assessoria jurídica do Legislativo da minha província, pela docência na mais antiga Escola de Ciências Jurídicas do Brasil, a do Recife; pela coordenação nacional de programas inovadores no plano do desenvolvimento social; presidi a Legião Brasileira de Assistência (à época, a maior agência de desenvolvimento social da América Latina) e deixei belas marcas digitais desse trabalho. Passei pelo corpo diretivo do também àquele tempo maior banco social da América Latina, a Caixa Econômica Federal; pela secretaria particular da Presidência da República (com José Sarney) e agora atuo no Tribunal de Contas da União, na condição de ministro decano, após ter sido presidente. Nessa Corte dedico-me, como juiz, às exatidões. Sou um «barnabé» (barnabé é o termo usual para designar servidor público). Ganha-se pouco, trabalha-se muito, é gratificante e, de vez em quando, divertido. Como se vê, situações bem diversificadas, nessas atividades, mas há uma constante de Cultura e Ação Social em tudo que me tocou fazer.
As funções me proibiram a delícia de entrar no acaso e amar o efêmero, mas felizmente não me ancoraram nas horas. Ao contrário, deram-me a libertação dos gestos. Nos armários da memória não há amarguras enlatadas por conta dos meus trabalhos. Ao contrário, há sensação do dever cumprido.
Carrego comigo a marca pesada de filho único. Não é bom ser filho único. É péssimo. Meus pais fizeram de tudo para evitar os infortúnios dessa condição. Pais esclarecidíssimos, os meus, mas sempre restou hipocondria, um certo egoísmo, algum sentimento de sofrer tutela exagerada. Não cumpri carreira político eleitoral. Sou democrata, mas nunca soube lidar com eleitor. Gosto, é claro, de público, mas não sou muito de multidão. Meu pai passou-me, de igual modo, o prazer do futebol. Tentei jogar e foi um horror. Desejava ser guarda-metas, acabei juiz! Em Portugal, sou Benfica. Torcendo pela seleção brasileira perco as estribeiras. Fanatismo exponencial. Meu pai ensinou-me, na escola onde fiz curso básico, português e latim. Fui orador de turma e espécie de «orador oficial». Presidi grêmios literários, fundei, em Limoeiro, a Academia dos Novos. Não aprendi a nadar. Ainda hoje tenho inveja dos nadadores.
Como noivei e casei cedo, ainda universitário, registro pouco em política estudantil. Ensinei Direito Internacional Público, de 1964 a 1975, quando transferi residência para Brasília. No Recife, fui também secretário de Estado duas vezes. Elegi-me para a Academia Pernambucana (AP) com 26 anos e aos 30 fui presidente. Consegui dar à Casa, após 70 anos de fundada, a sua sede própria. Trata-se de um belíssimo edifício classificado pelo Patrimônio Histórico. Ganhei de Gilberto Freyre o conceito: «Tão jovem e tão presidente».
Proclamo fixação no plano intelectual: Gilberto Freyre. Ele, Machado de Assis e Manuel Bandeira são referências, entre os célebres brasileiros mortos, que norteiam meus passos. Dos vivos, não falarei. Gilberto foi o principal pensador brasileiro do século XX. Sociólogo com notável expressão literária. Um verdadeiro escritor. Um sábio. Fomos íntimos. Devo muito a ele. Já em política o débito aponta para dois nordestinos díspares. Paulo Guerra, um rústico, que governou Pernambuco exemplarmente e José Sarney, refinado escritor e acadêmico que presidiu o Brasil em fase dificílima e consolidou a democracia após regimes autoritários. Gilberto Freyre reinventou o Brasil, explicou-nos o Brasil. Tenho uma saudade danada dele. Também é grande a saudade do poeta Mauro Mota. Seus versos têm visível preocupação com o social, sua ensaística é preciosa. A passagem pelo jornalismo um primor de objetividade, sem politização.
Os pais facilitaram-me os livros. Li, talvez cedo demais, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Zé Lins do Rego, Eça e Machado. Antes, transitara por Monteiro Lobato. Gosto muito dos lusófonos africanos, em particular de Mia Couto, Agualusa, Pepetela, Germano Almeida, Onésimo Silveira. Fora do Brasil, além deles, Carlos Fuentes, Camus, Eliot, Tolstói, Lorca, Borges, Coetzee, Llosa, Neruda. Fui compadre de Jorge Amado, Josué Montello, Herberto Sales e li tudo deles em encantamento crescente. Encantamento que tenho também em relação a Camões, Eça, Pessoa, O'Neil, Zeca Afonso, Amália, David Mourão-Ferreira, Vergílio Ferreira. Observe-se que também não falei de portugueses vivos.
Já fui muito supersticioso, cheio de manias. Depois desfez-se tudo no instante em que meu coração e da minha mulher passaram a vestir as lágrimas, com o sanar diário na saudade de Marcantonio. Filho genial que pôs a arte contemporânea do Brasil (pergunte-se a Alexandre Melo, Cabrita Reis, Croft, Julião Sarmento). Perdemo-lo no frutífero calibre dos 37 anos. Hoje, as superstições servem apenas para me divertir. Não mais as levo a sério como antes.
Não temo a morte. Temo as doenças. Suporto melhor cemitério que hospital. Ao sofrer cirurgia de revascularização nunca pensei que morreria. Apavorava-me o risco de seqüelas incapacitantes. Me benzo todo de medo disto.
Minha mulher é a maior figura da família. Mulher fortíssima. Por me tolerar heroicamente apelidei-a de Nossa Senhora da Paciência. Sou orgulhoso do invejável casamento que fiz, dos dois filhos – Taciana Cecilia e Rodrigo Otaviano - e dos seis netos. Uma, já na eternidade. Impecáveis. Junto a este, outro orgulho, o do que fiz como secretário Federal da Cultura e como presidente, tanto da AP quanto da Academia Brasileira de Letras (ABL). Inovei, não pelo gosto exótico da novidade, mas pela convicção de que interagindo se chega melhor à eficácia e à eficiência. Fui me encontrar com o povo, armado do senso seletivo. Acertei todas as vezes. Busquei a modernidade distinguindo-a do modernoso, sabendo que a tradição é para exemplificar não para meramente servir à repetição. Por vezes me desconheço. Pessoalmente sou pessimista, mas o administrador é desabotoadamente otimista. Você tem que acreditar no que faz. Tenho de ABL a idéia de instituição voltada às humanidades e não exclusivamente às letras literárias. Na Secretaria da Cultura nunca consenti que se pensasse que cultura de massa fosse a mesma coisa que cultura popular, nem que se desatendesse à abertura da política patrimonial para os bens imateriais. Cultura é idéia integradora. Cuidar de política cultural é cuidar da espessura do fazimento, é compreender a aventura da significação.
Adoro Lisboa. Melhor chamá-Ia de Lisótima. Adoro Piódão, Sortelha, Monsaraz, Marvão e detesto certa arquitetura medíocre que, por exemplo, vem destruindo o Algarve. Sou orgulhoso do muito que Portugal me deu. Não entendo, de jeito nenhum, é português que tem ciúme do Brasil. Ora, o Brasil e “Os Lusíadas” são as melhores criações de Portugal. Português deve se orgulhar do Brasil, do modo como somos diferentes na maneira de como somos derivados. O Brasil não é dependente de Portugal, mas nunca deixará de ser uma lusitanidade. É isto que certos portugueses, felizmente poucos, não conseguem entender. Olha cá, isto me dá uma raiva danada. É coisa de cartografia incompleta. E quando falam mal da língua amada que praticamos, ainda me magoa mais. Sempre parte dos encasacados vernaculares, supondo que a língua deveria ser engessada. Língua paralisada não se compatibiliza com inteligência em ação. Ser diferente não é ser contrário.
Quando das comemorações dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, coube-me o Comissariado brasileiro. Meu homólogo foi esse admirável intelectual e homem de ação, Ernâni Lopes. No Brasil e em Portugal, ao abrir oito reuniões temáticas em oito cidades diferentes, falei dessas minhas idéias, claramente, categoricamente. Meu amor à civilização portuguesa é amor altivo, sem subserviência. Amor cordial, sem perder a sinceridade. Não preciso de lições para amar Portugal.
Tenho consciência de que no momento próprio da chegada ao estuário do rio da vida (lá vem a idéia de rio, novamente), enlouquecido por gozar do paleio de vadio, vou observar o século com o seu protagonismo do conhecimento e vou poder dizer os versos de Pessoa, que em parte corroboram o personagem de Guimarães Rosa ao falar de que viver é perigoso: «Que da obra ousada é minha a parte feita/ o por fazer é só com Deus»
Escrever para mim, hoje em dia, é um sacrifício. Protejo-me no conceito de Adorno de que o livro, que venha sem sacrifício, não tem interesse. Estou com grande preguiça. Andei o mundo todo e tenho obras traduzidas para espanhol, inglês, italiano, francês, alemão e japonês. Oportunidades contemplaram-me a curiosidade por ver gentes e terras, experimentando sabores, sons, luzes. Até as geleiras da Antártida não escaparam aos meus olhos; nem desertos; nem florestas; nem metrópoles ou lugarejos. De tudo que vi resultou um provinciano incurável. Ultimamente, não me basta dizer que sou pernambucano, quero que se saiba que sou mais, sou pernambucanista. Como já falei, por isso me orgulho e proclamo a pernambucanidade da qual sou composto.
Jornal de Letras, Artes e Idéias (Portugal) 7/5/2008
19/05/2008 - Atualizada em 18/05/2008