Na aldeia Krenak, localizada na região do Médio Rio Doce, em Minas Gerais, nasceu, em 1953, Ailton Krenak. Protagonista das discussões em defesa do movimento socioambiental na Assembleia Constituinte, em 1987, comoveu a opinião pública. Ao discursar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, pintou o rosto de preto, com pasta de jenipapo, em sinal de luto. Um ano depois, participou da fundação da União dos Povos Indígenas, organização que busca representar os interesses indígenas no cenário nacional. E, em 1989, ajudou a criar a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia.
Pela literatura, Krenak expandiu o alcance de seu discurso dentro e fora do Brasil. Seus livros Ideias para adiar o fim do mundo (2019), A vida não é útil (2020) e Futuro ancestral (2022), lançados pela Companhia das Letras, compartilham a cosmovisão dos povos originários e fazem um alerta para os resultados da exploração descontrolada dos recursos naturais e humanos. Ano passado, Krenak lançou, pelo selo Companhia das Letrinhas, seu primeiro livro infantil, Kuján e os meninos sabidos, ilustrado por Rita Carelli e inspirado na oralidade de seu povo. “Foi Avó Laurita quem ouviu de Avó Bastiana”, escreve no prefácio. Eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2024, o filósofo e escritor voltou a protagonizar um momento histórico ao tornar-se o primeiro imortal indígena. Seu projeto? Levar à instituição mais de 300 línguas de povos que nunca tiveram reconhecida a oralidade enquanto narrativa e tradição literária. Nesta Entrevista, Ailton Krenak costura seus pensamentos sobre as dificuldades criadas e enfrentadas pela espécie humana, fala sobre a indispensável arte de sonhar, aponta para o poder de cura da literatura e clama vigilância constante para os direitos dos povos indígenas.
Seus livros Ideias para adiar o fim do mundo e A vida não é útil alertam para o risco de a humanidade desaparecer, uma vez que a própria espécie humana inviabiliza sua existência no planeta. Como foi o desenvolvimento dessas obras?
Quando eu mergulhei nesse estudo de nós mesmos, eu vi que já tínhamos experimentado, no século 20, muitas orientações pedagógicas. Afinal de contas, o Brasil teve Paulo Freire [1921-1997] e, no mundo, outros grandes educadores. Eles pensavam sempre em como preparar esse corpo humano para o trabalho, para a eficiência. Quando a gente virou o século, a gente descobriu que acabou o mundo do trabalho. A tragédia do século 21 deixou milhões de pessoas desempregadas. O que produz a fome e a miséria é a inadequação das pessoas para a sobrevivência, porque elas foram preparadas para o mundo do trabalho e o mundo do trabalho saiu debaixo dos pés de todos nós. Então, sem o mundo do trabalho, sem o piso para a gente pisar, eu comecei a olhar que a gente tinha caído numa espécie de abismo, onde a gente não teria no que se segurar, e que a própria ideia de esperançar, do mestre Paulo Freire, ficava sem âncora. Porque você não pode esperançar num mundo de zumbis, de gente que não tem território e que não consegue sonhar. Para esperançar, tem que sonhar. Uma outra semente que alimenta meu modo de pensar o mundo é o sonho. Como sonhar num abismo sistêmico desse?
Um dos caminhos que você aponta para adiar este possível fim do mundo caminha pelo viés de uma “educação para a convivência”. No que consiste essa ideia?
Como é que a gente vai se educar para a convivência? Não é uma idealização, e não é tolerância. Nós vamos ter que aprender com a terra a viver de novo. E a terra não dá moleza. A terra é uma mestra tão cortante que não vai dar segunda chance. E tudo indica que uma boa parte de nós não vai ficar vivo nas próximas décadas, diante dos eventos climáticos. Então, nós vamos ter que nos educar para entender o sinal da terra, aprender com a terra. Nego Bispo [pensador e líder quilombola (1958-2023)], antes de encantar-se, dizia: “A terra dá, a terra quer”. Teve gente que até anotou: “A terra dá, a terra come”. Não é só “quer”, não. A terra dá, a terra quer; a terra dá, a terra pede. Porque o nosso querido Nego Bispo tinha uma capacidade de espraiar um pensamento que ia além de uma direção só. Então, a terra doa, mas ela também come. E eu acho que agora está na hora da terra comer a gente.
Por que esse alerta, feito há décadas por lideranças indígenas, quilombolas e ambientalistas, começa a reverberar no mundo apenas no século 21?
A própria ideia de combater a fome e a miséria no planeta ressurge depois de 40 anos do Betinho [Herbert José de Sousa, sociólogo e ativista dos direitos humanos (1935-1997)] ter se imolado em torno de mobilizações no país. Agora, não se trata mais de um país, mas, sim, do planeta. Quando essa campanha [Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida] foi lançada no Brasil [em 1993], o mundo inteiro falou: “Ah, esses brasileiros inventam cada uma”. Porque eles não tinham esse problema. Só que a miséria e a fome agora estão batendo na porta do Banco Mundial, da Unesco, da ONU, da FAO, e eles estão todos falidos. A governança global vai ter que reconfigurar isso. No livro Ideias para adiar o fim do mundo, eu falo de quando a gente se organizou no Brasil para reivindicar um território na Serra do Espinhaço, que atravessa Minas Gerais e vai até a Bahia, na Chapada Diamantina. A gente teve que justificar para a Unesco porque queria proteger aquele território. Justificar com argumentos de biólogos, botânicos, geólogos, e ainda tivemos que fazer lobby junto à Unesco, na França, trazer gente de lá para vir sobrevoar o lugar e ver, atestar que a gente não estava mentindo, que aquele lugar existia. Aquilo é um manancial de águas. Nós vamos ter que nos reeducar, ou nos educar, para viver um tempo de mitigação de danos, e os danos incluem o corpo da terra e de nós mesmos, que somos capilaridade desse organismo.
Nós vamos ter que nos reeducar ou nos educar para viver um tempo de mitigação de danos, e os danos incluem o corpo da terra e nós mesmos, que somos capilaridade desse organismo
Outro aspecto sobre o qual você fala a respeito é o processo de dessensibilização das pessoas na era digital. Entre os resultados desse descolamento do corpo humano com o corpo terra, há quadros de sofrimento mental. Será preciso reivindicar o direito ao corpo nesse cenário de excesso de telas?
Eu costumo invocar a primeira manifestação das mulheres, as Margaridas, as mulheres indígenas, as camponesas sem-terra fazendo uma marcha em Brasília com uma faixa imensa dizendo: “Nosso corpo, nosso território”. Muito provavelmente, a mentalidade retrógrada entendeu que as mulheres estavam discutindo uma proteção da intimidade do corpo. Na verdade, estavam invocando um corpo-território. E um corpo-território é a cura possível desse abismo cognitivo e sensorial em que a gente se meteu, no qual o nosso corpo foi separado do corpo da terra de uma maneira radical e ampla. Eu escutei a professora Marilena Chauí dando um curso a distância, no qual ela disse que nós estamos passando por uma espécie de disrupção. É como se a gente estivesse passando por uma mutação, ela falou, do modo de nos conhecer e de conhecer o mundo. Ela disse que as pessoas não sabem mais o que é o seu entorno. Quer dizer, nós estamos vivendo num abismo e esse “nós” é um “nós” de todo mundo, tá? Ele não separa gregos e troianos. Ele não separa paulistas e baianos. Ele não separa ninguém.
Pode-se dizer, então, que os povos indígenas também estão sendo afetados por essa separação do corpo-território?
Alguém pode dizer: “Ah, tem um essencialismo que diz que os povos indígenas, os povos originários, os de matriz africana, o povo da diáspora, eles ainda têm essa magia de falar com a terra”. Mas, se você prestar atenção na voragem, até nossos povos estão sendo abduzidos pela fúria da mercadoria. O (Davi) Kopenawa Yanomami fala que existe uma crescente sociedade da mercadoria, que é como se um corpo fosse modificado e tudo virasse mercadoria. E os Yanomami estão dentro do território deles sofrendo uma invasão garimpeira. É como se não fosse mais uma escolha essa perda da comunhão com o território. Imagina o garimpo chegar lá na fronteira do Brasil, lá em cima, na fronteira com a Venezuela. Há 40 anos, eu li um relatório dizendo que aquele minério que estava lá, nos Yanomami, era inviável, porque não tinha logística para tirar aquilo de lá. A miséria é tanta que agora entram homens desesperados lá para morrer no meio do mato caçando o ouro – uma outra Serra Pelada. Quer dizer, nós estamos ficando muito mais pobres no mundo inteiro. Combater a pobreza no mundo pode ser uma espécie de última fronteira disso que se chama governança.
Matéria na íntegra: https://www.sescsp.org.br/editorial/ailton-krenak-e-a-indispensavel-arte-de-sonhar/
04/02/2025