Eram 21h em Genebra, na Suíça, quando o escritor de 77 anos surgiu na tela do computador para a conversa com o GLOBO, acompanhado da mulher, a artista plástica Christina Oiticica, e (virtualmente) por sua agente literária, Mônica Antunes. Ao saber do centenário do GLOBO, onde trabalhou como “foca” (repórter iniciante) entre 1972 e 1973, o escritor finalmente topou dar entrevista. Hoje em dia, ele quase não fala com a imprensa.
— Tenho quase 78 anos e um problema chamado preguiça, sabe o que é isso? — ri o autor de “Diário de um mago”, que deixou o jornalismo para para renovar o rock nacional ao lado de Raul Seixas.
Mas foi na literatura (e na magia) que ele se encontrou. Maior best-seller brasileiro, já vendeu mais 320 milhões de livros, e sua obra é publicada em mais de 170 países e traduzida para 89 idiomas. Começou a chamar atenção como autor no fim dos anos 1980, por tratar de espiritualidade de um jeito acessível, com lições que o leitor pudesse aplicar à própria vida (como perseguir sua “lenda pessoal”, conceito apresentado em “O alquimista”). Hoje sua obra é editada no Brasil pela Companhia das Letras.
Durante uma hora e meia de entrevista, Paulo Coelho fumou um único cigarro e falou com bom humor sobre os mais diversos assuntos: a colaboração com Raul Seixas, política, dinheiro, morte, sua famosa lista de desafetos e a relação conflituosa com os críticos.
— Me criticaram o quanto quiseram e hoje ninguém sabe quem são eles. E eu sou eu.
Abaixo, alguns trechos da entrevista.
Como é a sua rotina em Genebra?
Acordo às duas, três horas da tarde, e tomo meu café da manhã. Não tenho muita paciência para falar com as pessoas, vejo pouca gente. Na pandemia, comecei a ver televisão, acompanho tudo: crise do IOF, Oriente Médio...
Como é ver o Brasil à distância?
Tem horas que fico desesperado. Mas tenho muito orgulho de ser brasileiro. Parafraseando o (Gilberto) Gil, digo que o Brasil me deu régua e compasso. É um país que todo mundo respeita. Só os bolsonaristas não respeitam o Brasil, ficam dizendo que é ditadura. Pelo amor de Deus!
Você era muito ativo no X quando ainda se chamava Twitter. Por que saiu da rede social?
Era muita baixaria. Pensei: “Quem quiser ficar que fique, eu não estou a fim.” Continuo tendo opinião. Se quiser publicar alguma coisa, o que não me falta é canal. No Twitter você acaba dando palpites completamente desnecessários. Aparecer por aparecer não é legal.
O crescimento do autoritarismo te assusta?
A disciplina é uma virtude, mas o autoritarismo é um horror. O fundamentalismo cristão também é terrível, a intolerância com a fé ou a falta de fé alheia. Eu tenho minha fé, mas não quero convencer ninguém e não quero que tentem me converter.
Como pratica a espiritualidade?
Sou católico. Rezo, leio a Bíblia, vou à igreja.
Mas você consegue ir à igreja? Ninguém te incomoda?
Cara, eu moro na Suíça (risos)! Mas nem no Brasil me incomodaram na igreja. Nunca.
Você já arriscou vários gêneros literários, como romance histórico (“A espiã”) e suspense (“O vencedor está só”), mas a maioria dos seus livros lembra parábolas ou fábulas. Por quê?
Contar histórias aproxima as pessoas, traz esperança. No fim, só existem quatro tipos de história: histórias de amor entre duas pessoas, quando mais uma pessoa se apaixona e vira um triângulo amoroso, histórias de luta pelo poder e histórias de viagens. Toda história é uma versão de uma dessas quatro. Cada um escreve a sua preferida.
As suas preferidas são as histórias de viagens?
Sim. Eu sou da geração hippie, viajávamos para conhecer o mundo. Fui até os Estados Unidos pegando carona. É um país espetacular, que ninguém vai conseguir estragar, nem o Trump. O povo americano é sensacional, gentil. Não quero falar mal da Suíça, mas aqui as pessoas são mais distantes.
Os valores da sociedade alternativa ainda pautam a sua vida?
Sem dúvida. A tirania das marcas nunca me pegou. Estou aqui com uma camisa do Michael Jordan que foi presente do meu funcionário, que sabe que eu adoro basquete. Tem gente que gasta uma fortuna com roupa de marca e é tudo feito com trabalho escravo na Tailândia.
Qual é o tamanho do seu patrimônio?
Em torno de US$ 500 milhões (R$ 2,7 bilhões). Vou gastar onde? Em obras sociais. Não tenho vergonha de falar que faço caridade. É bom para dar exemplo. Como disse Jesus, ninguém acende uma vela para colocá-la embaixo da cama, a vela tem que iluminar a casa.
Ter ficado tão rico não mudou seus valores?
Meus prazeres são ver televisão, viajar... O dinheiro mudou meu estilo de vida, claro, mas não quem eu sou.
Nem suas opiniões políticas? Sempre te associaram à esquerda...
Sim. Ser de esquerda é se preocupar com justiça social, não tem nada a ver esse negócio “vai pra Cuba”. Embora eu tenha críticas, acho que Lula está fazendo um bom governo. Mas nenhum ministro dele me cita. No Brasil é quase politicamente incorreto dizer que seu escritor favorito é Paulo Coelho.
Você guarda alguma mágoa da crítica brasileira?
Eles é que têm que ter mágoa de mim. Me criticaram o quanto quiseram e hoje ninguém sabe quem são eles. E eu sou eu (risos). Isso deve chateá-los muito. Faria tudo isso de novo, botar capa (de mago) e tudo. Não adianta fugir das minhas verdades. A peregrinação mística no Caminho de Santiago mudou a minha vida. Quando terminei o caminho, percebi que na verdade aquele era só o começo. Foi um rito de passagem, embora eu já praticasse magia antes.
Dizem que existe a lista de desafetos de Paulo Coelho...
Sim, no meu computador. Foi ingrato comigo? O mundo dá voltas, você um dia vai pedir alguma coisa para mim e eu vou negar com o maior prazer. Não estou nem falando de candidatos à Academia Brasileira de Letras que ficam bonzinhos quando vêm pedir meu voto e esquecem o que falaram de mim. Quem apanha não esquece nunca.
Dá para sair da lista de desafetos de Paulo Coelho?
Pedir desculpas é muito fácil. O Cândido Mendes de Almeida (1928-2022), meu colega na ABL, vivia descendo o cacete em mim, mas descobri que ele ajudou muita gente na ditadura. Quem ajuda preso político, e eu fui preso político, está perdoado de tudo. Liguei para ele: “Eu sei que o senhor não gosta de mim. E eu também tinha muita restrição, porque o senhor sempre me detonou. Entretanto, descobri que o senhor ajudou muita gente na ditadura.” Aí ele começou a chorar!
Você tem leitores célebres: Malala, Oprah, Obama...
Não é demagogia, mas o melhor encontro é com aquele leitor que vem falar comigo na rua. Outro dia eu estava andando com a Christina e veio uma moça chorando. Ela disse: “Eu estava procurando a sua casa e de repente te encontro na rua. Estou emocionada.” Chorei junto com ela.
Dizem por aí que o seu sucesso no exterior é mérito dos tradutores que melhorariam o texto...
Claro que não. Imagina! Os tradutores não mudam nada, nem sonhando.
Se estivesse vivo, Raul Seixas estaria com 80 anos. Como vocês conciliavam o trabalho e a amizade?
A gente fingia que não, mas o trabalho atrapalhava um pouco. Era uma relação cordial, a gente nunca se agrediu fisicamente. Mas eu era o letrista e ninguém sabe quem é o letrista, né? Você sabe quem escreveu “Asa branca” junto com Luiz Gonzaga? Humberto Teixeira. Ninguém lembra! Eu me imaginava um dia num bar, bêbado, tentando impressionar as meninas e os meninos dizendo “eu sou o letrista do Raul Seixas”. E eles iam dizer: “Quê?” O anonimato é muito difícil para o artista. É por isso que tem que pegar o touro à unha, ir para casa e escrever. O meu sonho era ser escritor.
Você está trabalhando com Gilberto Gil e o maestro italiano Aldo Brizzi numa ópera inspirada no poema “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias, para ser apresentada na COP, a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas em Belém...
Aldo Brizzi queria fazer uma ópera baseada no “Alquimista”. Eu disse que não, porque o Brasil estava numa situação complicada, com desmatamento, ataque a reservas indígenas, e que devíamos fazer uma ópera sobre um poema que eu sempre adorei: “Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi:/ Sou filho das selvas,/ Nas selvas cresci;/ Guerreiros, descendo/ Da tribo tupi”. Na história, I-Juca-Pirama volta para casa, mas o pai o força a enfrentar o destino. Não boto fé na COP, não. Tenho fé no Gil, no Aldo e em mim, mas não na COP.
Por quê?
Cara, o que eu já vivi desses encontros... Fui várias vezes ao Fórum Econômico de Davos. Conheci muita gente interessante e muita gente que só pensava em dinheiro. O resto era tudo enrolação. Esses eventos do G20, dos Brics, de que adiantam? Mudam o quê?
Você pensa muito no passado?
Não gosto. Mas, quando olho para trás, penso: “Porra, eu fui muito louco, fiz tudo o que queria, não deixei nada para depois.” O único país que ainda quero conhecer é o Vietnã. Tenho muitos amigos que pararam no tempo, só sabem falar “ah, quando eu fiz aquilo”, e não vivem o presente. Todo dia traz uma nova proposta, ficar só lembrando do passado é um horror. Um dia, o Raul e eu estávamos voltando de Dias d’Ávila e tinha uma placa: “Não pare na pista.” Pensei: “Porra, isso é uma lição de vida.” Tanto que esse é o título de um filme que fizeram sobre mim. Foi assim que eu toquei a vida, a gente não pode parar na pista.
E na morte, você pensa?
Todo dia. Mas não morbidamente. Fiz uma música chamada “Canto para minha morte”. Já corri muito risco que não precisava. Escapei com a graça de Deus. Todo dia antes de dormir, eu penso: “Se eu não acordar, tudo bem.” Combati um bom combate, mantive a fé. Devo me arrepender de alguma coisa, mas nada obsessivamente.
Quando vem o próximo livro?
Não sei, mas em algum momento virá.
29/07/2025