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Discurso de posse

Senhor presidente e membros da diretoria da Academia Brasileira de Letras, autoridades públicas e universitárias, colegas do Departamento de Letras e Artes da Cena da PUC-Rio, colegas acadêmicos, familiares e pessoas amigas aqui presentes. É para mim, como seria para qualquer escritor brasileiro, uma grande honra e uma grande alegria me tornar membro desta instituição. Hoje assumo a cadeira nº 30, que tem como patrono o jornalista e escritor gaúcho Pardal Mallet, ativista na causa republicana e adversário feroz de Floriano Peixoto. Ele publicou duas novelas, Hóspedes e Lar, de feição naturalista, e faleceu com apenas 29 anos de idade. O primeiro ocupante da cadeira, o também jornalista e escritor carioca Pedro Rabelo, militou em prol das duas principais causas progressistas de seu tempo, o republicanismo e a abolição; escreveu um livro de mais peso, Alma alheia, que revelava forte influência de Machado de Assis; e morreu aos 37 anos. Seu sucessor, o filólogo cearense Heráclito Graça, publicou um único livro, Fatos de linguagem; foi também advogado e político, atuando no Maranhão, na Paraíba e no Ceará. Ao viver até os 76 anos, veio felizmente quebrar a tradição de morrer ainda jovem, que seu antecessor e o patrono pareciam haver determinado para a cadeira nº 30. O terceiro ocupante, o pernambucano Antônio Austregésilo, publicou dois livros de poesia, Manchas e Novas manchas, mas teve menos sucesso como poeta do que como neurologista; foi também um dos pioneiros da psicanálise em nossa terra, tendo publicado livros sobre suas especialidades, além de atuar na política. Foi o primeiro ocupante da cadeira a ser verdadeiramente longevo: ao morrer, havia completado 84 anos de idade.

Seu sucessor, o quarto a ocupar a cadeira nº 30, o alagoano Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, merece uma atenção mais demorada. Nascido em 1910 em Alagoas, tendo-se formado em direito no Recife, começou a trabalhar como professor de português, francês e literatura em Maceió, mas com menos de trinta anos mudou-se para o Rio, então capital federal, sempre atuando no ensino médio. Começou a publicar artigos, contos e crônicas na imprensa carioca. Como antologista, organizou com Paulo Rónai uma obra extraordinária: Mar de histórias, coletânea em vários volumes de contos das mais diversas culturas. Aurélio foi também um tradutor literário importante, tendo vertido os Pequenos poemas em prosa de Baudelaire e muitos dos contos incluídos em Mar de histórias; também publicou obras de crítica literária. Mas foi como lexicógrafo que Aurélio se destacou, e foi essa a sua faceta que mais impacto teve sobre mim. Desde tenra idade, tenho um fascínio por dicionários e enciclopédias. Durante a minha infância, o único dicionário de português que havia em minha casa era o Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, realizado por uma equipe da qual já participava Aurélio. Era um dicionário bastante limitado, o que percebi quando, aos dez anos de idade, fui morar com minha família, por dois anos e meio, em Washington, capital dos Estados Unidos. Tendo aprendido o inglês, comecei a utilizar o Webster’s New World dictionary, um dicionário modesto se comparado com gigantes como o Webster’s third ou o New Oxford, obras que eu só viria a conhecer muito depois, quando, aos vinte anos de idade, fui estudar cinema na Califórnia; mas mesmo em comparação com o New World o Pequeno dicionário já me parecia realmente muito pequeno. Dicionários do português maiores que ele, como o Caldas Aulete e o Morais e Silva, já existiam, mas o único dicionário grande a que eu tinha acesso era o lusitano Lello Universal, que eu às vezes folheava na casa de um garoto que morava na minha rua, na então denominada Aldeia Campista, na Tijuca. Mas voltando ao Pequeno dicionário, o próprio Aurélio Buarque de Holanda tinha consciência das limitações da obra, e já nos anos 60 esforçava-se no sentido de empreender um dicionário mais robusto. Várias tentativas de financiamento fracassaram, até que a Nova Fronteira finalmente assumiu o projeto de Aurélio, que resultou na publicação, em 1975, do Novo dicionário da língua portuguesa. Esse dicionário, além de coroar a carreira de seu autor como lexicógrafo, instituiu um novo padrão de qualidade no ramo dos dicionários de português brasileiro. Como durante um bom tempo não havia nenhum concorrente a sua altura — o que só veio a ocorrer mais de um quarto de século depois, com a publicação do Dicionário Houaiss da língua portuguesa em 2001 — o próprio nome “Aurélio” passou a funcionar como virtual sinônimo de “dicionário”. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira foi eleito para esta Academia em 1961, e nela permaneceu por quase 30 anos. Morreu em 1989, aos 78 anos de idade.

A sucessora de Aurélio, quinta ocupante desta cadeira, também é um nome merecidamente muito conhecido: Nélida Piñon. Foi apenas a terceira mulher a ser admitida a esta Academia, em 1989, e também a primeira mulher a integrar a diretoria da instituição e ocupar sua presidência, exercendo esse cargo entre 1996 e 1997. Nascida no Rio de Janeiro em 1937, Nélida era de uma família galega, que se radicou nesta cidade na década de 1920, e desde a infância foi fascinada pelas histórias que ouvia a respeito da sua terra de origem. Formou-se em jornalismo na PUC-Rio, e trabalhou em várias revistas. Sua estreia literária se deu em 1961, com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, um livro percorrido por dois temas que viriam a se tornar centrais na sua obra: a religião e a questão do feminino. A religiosidade explorada na ficção de Nélida tem duas facetas: de um lado, o cristianismo, seus dogmas e seus mitos; do outro, um panteísmo fortemente associado ao feminino. No romance Madeira feita cruz, de 1963, mais uma vez o protagonista é uma mulher, que enfrenta os tabus cristãos associados ao corpo feminino. Essa fase inicial da produção romanesca de Nélida culmina numa obra em que ela radicaliza a pegada experimental das suas publicações anteriores: A casa da paixão, livro de 1972 em que entram em choque a religiosidade cristã e uma vivência de um sagrado primitivo, anterior às interdições impostas pelo cristianismo. A protagonista, Marta, rejeita uma sexualidade normatizada em torno do casamento, afirmando o desejo — em particular, o desejo feminino. A escrita é caracterizada por uma sintaxe fracionada, em que muitos períodos se reduzem a orações subordinadas, o que viria a se tornar uma das marcas de estilo da autora.

Saltemos para 1984, o ano da publicação de A república dos sonhos, já pertencente a uma segunda fase da produção literária de Nélida. Trata-se de um romance longo, de fôlego épico, sobre a vida de um jovem galego que vem para o Rio de Janeiro para fazer fortuna, seus sucessos e seus fracassos, e a família que ele constitui em terras brasileiras. Embora aqui a figura central seja a de Madruga, o patriarca, o livro traça também um panorama multigeracional de gradual emancipação feminina. O foco narrativo muda ao longo da obra, e pouco a pouco vai ganhando centralidade a personagem de Breta, neta de Madruga, que tenta reconstruir a história de sua família, a qual se entrelaça com a acidentada história política do Brasil do século passado. Num livro subsequente, A doce canção de Caetana, publicado em 1987, Nélida também trabalha com uma linguagem mais simples e uma narrativa mais linear do que nos livros experimentais da primeira fase; o romance mais uma vez é centrado numa figura feminina transgressora, que não aceita o papel secundário a que tradicionalmente são relegadas as mulheres no Ocidente cristão.

Além de escrever, Nélida ensinou criação literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tornou-se catedrática da Universidade de Miami e foi escritora visitante em Harvard, Columbia, Johns Hopkins e Georgetown; recebeu o título de doutora honoris causa em nada menos do que seis universidades no estrangeiro. Escritora multivalente, além dos romances mencionados e vários outros, Nélida Piñon também publicou volumes de contos, memórias, ensaios, crônicas e obras infantojuvenis. Recebeu numerosos prêmios literários, no Brasil e em diversos outros países, e vários de seus livros foram traduzidos e publicados no exterior. Nélida Piñon veio a falecer em dezembro de 2022, aos 88 anos de idade.

Chegamos então à sexta e mais recente ocupante desta cadeira nº 30, minha antecessora imediata: Heloisa Teixeira, mais conhecida durante a maior parte de sua carreira como Heloisa Buarque de Hollanda. Nascida em 1939 em Ribeirão Preto, forma-se em Letras Clássicas na PUC-Rio, e em seguida passa a estudar teoria da literatura. Começa a atuar na UFRJ, onde faz seus estudos de pós-graduação. Em seguida, completa seu pós-doutorado em literatura brasileira na Columbia University, em Nova York. Nos anos 80, dirige o Museu da Imagem e do Som, o MIS, no Rio de Janeiro, e cria a Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais – Ciec, na Escola de Comunicação da UFRJ. Desde o início da sua formação em literatura, Heloisa interessa-se por poesia, questões de gênero e de etnia, e por culturas marginalizadas, temas que passam a ser objeto de suas pesquisas no Ciec. Ao longo de sua vida, publica várias obras importantes sobre literatura, feminismo e cultura alternativa, como Macunaíma, da literatura ao cinema; Impressões de viagem: cultura e participação nos anos 60; Pós-modernismo e política; e O feminismo como crítica da cultura. Impressões de viagem, publicado em 1980, foi a versão em livro da tese de doutorado defendida pela autora dois anos antes na UFRJ. Nessa obra Heloisa aborda o CPC, o Centro Popular de Cultura, movimento da maior importância que florescia quando ocorreu o golpe de 1964; a tropicália, surgida pouco antes da instauração do Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5; e a cultura dita marginal dos anos 70, sobre a qual voltaremos a falar adiante. Mas Heloisa não foi apenas uma cronista e uma estudiosa deste riquíssimo e conturbado período da nossa história: foi também uma protagonista de sua época. Todos os leitores de 1968, o ano que não terminou, do acadêmico Zuenir Ventura, se lembrarão do famoso réveillon de 1968, comemorado na casa “da professora Heloisa Buarque de Hollanda, bonita, culta e de esquerda”, que era, segundo Zuenir, “mito e ícone da intelectualidade carioca dos anos 60”, e seu então marido, o advogado e galerista Luiz Buarque de Hollanda. Para Zuenir, o “réveillon da casa da Helô” teria sido uma espécie de prenúncio do que estava por vir: o período inaugurado pelo extraordinário ano de 1968, marcado por uma efervescência cultural nas áreas de música popular, cinema, teatro e literatura, além do campo dos costumes, em particular o comportamento sexual. Sempre segundo Zuenir, nada menos do que 17 casamentos teriam se desfeito naquela noite de réveillon ou em consequência da festa. Boa parte desse florescimento cultural seria alvo do AI-5, decretado no dia 13 de dezembro de 1968, que levaria à prisão ou ao exílio tantas figuras centrais da cultura brasileira. Mas mesmo com o acirramento da repressão, nos anos que se seguiram teve prosseguimento a grande experimentação existencial e artística que marcou esse ano icônico.

Além de pesquisadora e pensadora, Heloisa foi também editora e organizadora de obras; criou a casa editorial Aeroplano nos anos 90; e em anos recentes organizou a coleção Pensamento Feminista em quatro volumes, publicada pela editora Bazar do Tempo, à qual ela estava associada em seus últimos anos. Assim, Heloisa atuou em múltiplas capacidades: foi crítica literária, professora, ensaísta, antologista, editora e ativista, atuando como feminista e como estudiosa e incentivadora da produção de criadores que vivem mais ou menos à margem do sistema. Ao ingressar nesta Academia em abril de 2023, Heloisa trouxe para cá a Universidade das Quebradas, projeto inicialmente realizado na Faculdade de Letras da URFJ, com apoio do Instituto Odeon, tendo como objetivo formar escritores da periferia. Em 2024, o primeiro curso abordou a figura de Machado de Assis como afrodescendente e periférico, em parceria com a Festa Literária das Periferias — Flup. Também em 2024, marcando os 60 anos do golpe de 1964, Heloisa lançou Rebeldes e marginais: Cultura nos anos de chumbo (1960-1970), mais uma vez se debruçando sobre o período em que atuou como protagonista, estudiosa e analista.

Para mim, pessoalmente, a faceta de Heloisa que mais importância teve foi seu trabalho de antologista. Ao longo de sua vida, ela organizou três coletâneas de poesia: 26 poetas hoje, de 1976; Esses poetas: uma antologia dos anos 90, de 1998; e As 29 poetas hoje, de 2021. Todas essas antologias foram relevantes nos momentos em que foram lançadas. Mas a mais marcante das três foi a primeira, 26 poetas hoje, uma obra que apresentou a um público mais amplo um punhado de poetas ditos marginais, muitos dos quais posteriormente teriam reconhecimento geral — dois deles, aliás, são agora meus colegas nesta Academia. A antologia se tornou uma espécie de divisor de águas na história da poesia brasileira. Eu gostaria de me estender mais um pouco a respeito dessa questão, que me toca de perto, como estudioso de poesia brasileira contemporânea.

Há muito tempo existe um consenso entre os estudiosos de literatura brasileira de que o nosso modernismo começa no ano de 1922. É claro que se pode apontar para algumas publicações anteriores que já antecipam o espírito modernista, mas 1922 é não só o ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo — o evento que chamou a atenção de boa parte do país para o que estava acontecendo na literatura e nas artes em geral — como também é a data da publicação de Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade. Esse foi o primeiro livro importante de poesia moderna lançado no nosso país, utilizando em larga escala o verso livre e introduzindo tantas outras características formais da nova poesia, que de longa data vinham sendo empregadas no inglês, no francês e em outras línguas europeias, e que mesmo no nosso idioma já tinham sido introduzidas em Portugal, notadamente por Fernando Pessoa. Como marco do final do período modernista, é comum tomar-se o ano de 1945, embora alguns estudiosos falem numa “terceira fase do modernismo”; mas a meu ver o melhor nome para o período então iniciado talvez seja “pós-modernismo”. Pois 1945 é o ano em que morre Mário de Andrade, o nome central do período modernista, e é o ano adotado por um grupo de poetas que reagem contra algumas características do modernismo para se autodenominar como geração, a “geração de 45”. Nessa mesma fase também vão surgir, em oposição à geração de 45 (na qual João Cabral, é claro, é uma exceção), alguns movimentos neovanguardistas que visam retomar a “linha evolutiva” modernista, o mais famoso e influente deles sendo o concretismo. A tropicália — a última das neovanguardas que marcaram isso que prefiro chamar de período pós-modernista, e que teve como uma de suas figuras centrais um outro membro atual desta Academia — a tropicália teve um aspecto diferencial que foi identificado e analisado por uma das maiores estudiosas do movimento, a antropóloga cultural Santuza Cambraia Naves. Ao contrário das outras neovanguardas, que tinham sempre um lado prescritivo e um lado proscritivo, a tropicália, segundo Santuza, caracterizava-se por defender uma postura inclusiva, cujo lema bem poderia ser “É proibido proibir”, nome de uma canção de Caetano Veloso. Assim, por exemplo, os concretistas postulavam um poema que fosse basicamente visual, em que a mancha gráfica tivesse mais importância do que a realização sonora, e afirmavam a morte do verso. Já os adeptos de um outro movimento neovanguardista, a poesia-práxis, defendiam que o poeta deveria tratar acima de tudo das questões políticas do momento, e não só afirmavam a morte do verso como também atacavam, mais do que qualquer outra coisa, o concretismo, visto como “alienado”, para usar um termo de época. Os tropicalistas, porém, influenciados por Oswald de Andrade, afirmavam que a cultura brasileira abrangia tudo, desde o programa do Chacrinha até a poesia experimental, do samba mais tradicional ao iê-iê-iê da Jovem Guarda, do sentimentalismo e do mau gosto atroz de “Coração de mãe” de Vicente Celestino ao intelectualismo refinado e cool de “Chega de saudade”, na voz de João Gilberto. Essa inclusividade radical foi a característica mais marcante da tropicália, que a distinguiu de todas as outras neovanguardas de meados do século.

A tropicália foi o último dos movimentos ocorridos nesse período e também o mais breve de todos, porque pouco tempo após ele ser deflagrado veio o AI-5. Por isso, o dia 13 de dezembro de 1968 poderia ser tomado como o fim do período pós-modernista. Mas se quisermos focar especificamente na poesia, um outro marco poderia ser proposto: a publicação de 26 poetas hoje em 1976. A contribuição de Heloisa Teixeira à historiografia da poesia brasileira foi justamente captar, com sua sensibilidade incomparável, o que estava acontecendo de novo no cenário poético nos anos que se seguiram ao grande cala-boca coletivo do AI-5. Na sua introdução, ela observa: “Frente ao bloqueio sistemático das editoras, um circuito paralelo de produção e distribuição vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia.” Heloisa destaca que nesse novo circuito o autor muitas vezes participa “nas diversas etapas da produção e distribuição do livro”, o que resulta num “produto gráfico integrado”. Escreve também:

 

No plano específico da linguagem, a subversão dos padrões literários atualmente dominantes é evidente: faz-se clara a recusa tanto da literatura classicizante quanto das correntes experimentais de vanguarda que, ortodoxamente, se impuseram de forma controladora e opressiva no nosso panorama literário.

 

A autora registra que os novos poetas retomam a “contribuição mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação poética do coloquial como fator de inovação e rutura com o discurso nobre acadêmico.” Em cinco páginas, Heloisa capta o essencial do novo momento poético com absoluta precisão.

O mensageiro que traz uma notícia é inevitavelmente escorraçado por aqueles que consideram a notícia má. Ao mostrar ao público livresco que a coisa mais nova em matéria de poesia era a produção da chamada “geração marginal” — aquelas plaquetes mimeografadas vendidas ou distribuídas nas portas dos cinemas e teatros das grandes cidades, em particular do Rio de Janeiro — e ao demonstrar, com exemplificação farta, que essa poesia aparentemente descuidada, que vinha desacompanhada de manifestos e rompimentos explícitos com movimentos anteriores, era a que mais revelava a face dos tempos que estávamos vivendo, Heloisa incomodou e chocou boa parte da intelectualidade brasileira. Hoje reconhecemos a dívida que os chamados marginais têm com o modernismo e até mesmo com a vanguarda concretista — afinal, tanto os marginais quanto os concretos têm em Oswald de Andrade um de seus principais precursores. Na época, porém, uma parte do establishment cultural reagiu com intolerância a essa poesia que se fazia fora dos ambientes literários e acadêmicos tradicionais, a contrapelo tanto da versificação clássica quanto das posturas neovanguardistas.

Para mim, pessoalmente, a leitura da antologia da Heloisa foi fundamental. Embora escrevesse poesia desde sempre, eu havia me imposto a condição de só publicar depois que completasse trinta anos de idade, e por isso minha estreia literária se deu apenas no início dos anos 80. A poesia que eu escrevia — mas não publicava — nos anos 70 era diferente da poesia marginal, pois eu tinha a intenção de dominar os metros tradicionais e outros recursos da versificação portuguesa que estavam sendo rechaçados tanto pelas neovanguardas quanto pelos marginais. No entanto, quando li 26 poetas hoje percebi que eu e aqueles poetas tínhamos muito em comum: a sensação de não pertencermos ao mundo a que pertencíamos inevitavelmente; a repulsa aos valores autoritários e conservadores impostos a toda uma nação; o desejo irrefreável de transgredir; o fascínio pela contracultura; e o impulso de escapar do clima sufocante do Brasil daquele período. Ana Cristina Cesar, nascida seis meses depois de mim, foi para Londres estudar tradução, alguns anos depois da minha temporada de estudos de cinema em Los Angeles e San Francisco; com ela eu viria a ter contatos profissionais mais tarde, quando nós dois já atuávamos como tradutores. Antonio Carlos Secchin, meu colega nesta Academia, que nasceu oito dias depois de Ana Cristina, foi para a França ensinar literatura e cultura brasileira na Universidade de Bordeaux. Geraldo Carneiro, também meu colega de ABL, nascido apenas um dia depois de Secchin, já era estudante do Departamento de Letras da PUC-Rio um ano antes de eu me matricular lá. E Chacal, sete meses mais velho do que eu, viajou para Londres mais ou menos na época em que fui para a Califórnia, mas não, como eu, Ana Cristina e Secchin, para estudar ou lecionar, e sim para mergulhar de cabeça na Swinging London. Esses poetas, portanto, estavam no mesmo barco que eu. Graças à antologia da Heloisa, me dei conta de que, também na esfera da poesia, eu fazia parte de uma geração — essa geração que tanto apostou na ideia de juventude, e que, não tendo conseguido melhorar o mundo, nem sequer tendo conseguido evitar a volta triunfal do fascismo, chega agora à velhice — uma coisa que acontece com todos, fora os que, como Ana Cristina Cesar, Torquato Neto e Cacaso, e como o patrono e o primeiro ocupante da cadeira 30 desta Academia, foram agraciados pelos deuses com a duvidosa distinção de morrer jovens.

Eu gostaria de encerrar agradecendo às pessoas que me ajudaram a chegar a este momento, mas vou ter que ser econômico, porque não daria tempo de fazer todos os agradecimentos devidos. Agradeço, em primeiro lugar, a esta Academia; foi muito importante para mim, neste momento da minha trajetória, ser tão bem recebido por essa instituição mais do que secular. Agradeço ao Geraldo Carneiro, que com tanto empenho me ajudou, num passo-a-passo cuidadoso, a lançar e concretizar minha candidatura. Agradeço a Antônio Carlos Secchin, que também me auxiliou nessa etapa inicial. Agradeço à equipe da ABL, com um destaque especial para a secretária executiva da instituição, Lucia Deppe, por sua assistência atenciosa e competente. Agradeço o auxílio luxuoso de Maria Amélia Barreto Peixoto, Marta Góes, Fred Coelho e Dani Lima, e gostaria de manifestar uma gratidão especial por meus amigos Eduardo Martins, Margareth Dalcolm e Lucas Viriato, pela sua generosidade desmedida. Agradeço à direção da PUC-Rio por contribuir para esta celebração, e a meus colegas e ex-colegas, alunos e ex-alunos, funcionários e ex-funcionários do Departamento de Letras e Artes da Cena, pela amizade de sempre e a solidariedade nos momentos mais difíceis. Agradeço a minha família estendida — irmão, cunhada, primos e primas, amigos e amigas de trinta anos, de cinquenta anos, da vida inteira. Agradeço a meus filhos Felipe e Júlio e a meus netos Antônio e Gael, pelo apoio irrestrito e afeto inesgotável, e especialmente a minha querida nora Fernanda, que me ajudou no preparo desta comemoração com eficiência e dedicação incomparáveis. Agradeço, postumamente, a meus pais, e a Santuza Cambraia Naves, minha companheira de vida por exatos vinte e seis anos e duas semanas. A todos, muito obrigado.