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Pedaços da catedral inacabada

 

Não, não se trata daquela catedral em Barcelona, que Gaudí projetou, iniciou as obras e até hoje continua em construção. Visitei-a diversas vezes, impressionaram-me os pedaços estraçalhados que se espalham em seu ventre a céu aberto, ameaçando um templo formidável e complicado.


Bem verdade que na última vez em que a visitei, em companhia do Marcelo Coelho, havia obras, centenas de operários pareciam dispostos a concluí-la. Mas a catedral é tão monstruosa que ainda levará algumas décadas para ficar pronta. Ainda bem, prefiro-a assim, com sua carne aos pedaços, entranhas expostas ao sol - e belas.


Pietro Citati, em sua biografia de Proust, compara "La recherche" aos pedaços de uma catedral inacabada. É isso mesmo: a obra de Proust não foi feita para ficar pronta, ter um sentido físico e definitivo.


Se aprecio a igreja da Sagrada Família do grande arquiteto espanhol, e a obra dilacerada de Proust, não tenho nenhum entusiasmo pela falta de acabamento de um país imenso como o Brasil, que parece sempre em obras, aqui e ali uma coluna espetando o espaço, um vazio no espaço indicando que ali será colocado um vitral que a luz atravessará e iluminará para sempre.


Porém já cinco séculos são passados e o Brasil continua espalhado, sem um texto final. Admira-se sua grandeza, sua potencialidade, seu gigantesco chassi de grande nação, mas as peças definitivas estão embaralhadas e permanecem no chão, esperando que os guindastes da fortuna ou do trabalho comecem a erguê-las, colocando-as onde deveriam ficar.


Algumas dessas peças ainda nem foram concretadas, vivem e sobrevivem na prancheta dos arquitetos que se sucedem, uns destruindo o trabalho de outros, sem um nexo que dê um sentido geral à obra. Tal como a catedral inacabada de Gaudí, o Brasil está longe de ser uma ruína. Mas dá a impressão de que nunca ficará pronto.




Folha de São Paulo (São Paulo) 21/11/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 21/11/2005