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ABL na mídia - O Globo - Nova biografia de Machado de Assis propõe releitura de vida e obra do autor tendo negritude como pano de fundo para entender sua genialidade

 

Não é sempre que alguém se propõe a investigar em profundidade a vida e a obra do maior escritor brasileiro. Pelo contrário. A última grande biografia de Machado de Assis foi a publicada por Raymundo Magalhães Jr., em quatro volumes, em 1981 — e depois vieram muitos perfis nada extensos, além de vasta fortuna crítica. Daí a atenção que merece “Machado — O filho do inverno”. Seu autor é C. S. Soares, especialista em gestão da informação e editor que nos últimos 15 anos mergulhou na história do Bruxo do Cosme Velho. Emergiu com uma questão central: até agora, a negritude do escritor nunca foi tão valorizada como deveria ter sido.

“O Machado negro não é uma hipótese lateral, tampouco uma variação interpretativa: é o único Machado possível”, resume C.S. Soares logo na abertura. “E é a partir desse reconhecimento que sua obra ganha ainda mais densidade, ferocidade e urgência.”

Logo se vê que a biografia é um projeto de fôlego, disposto a fazer a diferença. Este primeiro volume cobre desde o tempo dos avós do escritor até o lançamento de “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881). O segundo volume, previsto para sair em 2026, abrangerá de 1882 até a morte de Machado, em 1908. Ao todo, serão mais de mil páginas, incluindo rica iconografia. Nascido em 1839, Joaquim Maria Machado de Assis teve vida intensa e extensa, produzindo poesia, teatro e crônicas, além dos consagrados contos e romances. E ainda tornou-se o principal dos cofundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), sem descuidar da labuta como funcionário público por mais de 40 anos e do casamento com sua Carolina.

Outras questões

Mas voltemos: a esta altura, mais de um século após sua morte, o que há de novo a se falar sobre Machado de Assis? Se, sobretudo pelo racismo estrutural da civilização brasileira, sua negritude foi camuflada durante décadas, agora devemos ler sua obra com outros olhos? É isso? A resposta não pode ser sucinta, como mostra C. S. Soares:

— Sim. Agora passamos a enxergar, antes de tudo, que a obra dele muda completamente de cor e de sentido quando a questão da negritude entra no centro da leitura. O que parecia neutro ou apenas “formal” ganha densidade histórica: a ironia deixa de ser enfeite e se revela uma estratégia de sobrevivência, um modo de criticar o poder sem se expor num país escravocrata; o silêncio, antes lido como pudor ou enigma, aparece como código; os pseudônimos deixam de ser simples máscaras literárias e surgem como escudo; e sua crítica social e abolicionista, por muito tempo diluída pela leitura tradicional, ganha nitidez, tornando visível a denúncia da escravidão e do racismo que ele articulava sob a camada de humor e contenção.

Tendo essa negritude do autor de “Quincas Borba” como pano de fundo, o biógrafo diz que pretende incentivar estudiosos e os leitores comuns a relerem o Bruxo:

— Em vez de um Machado etéreo, universal e abstrato, veremos um escritor cuja literatura deixa de ser apenas um exercício de estilo e aparece como uma resposta cifrada ao mundo que tentou silenciá-lo e como uma afirmação teimosa de existência — afirma o biógrafo.

Na prática, o que significa reler “Dom Casmurro”, por exemplo, sob essa ótica? C. S. Soares responde com outra pergunta:

— Não sou nem pretendo ser crítico literário; sou escritor e biógrafo. Mas, nesse contexto, como reler “Dom Casmurro” sem reconhecer que Bentinho é filho de uma elite senhorial e que seu ciúme por Capitu, mulher mestiça, expressa não apenas inquietações íntimas, mas também os recalques de uma estrutura social que desconfia sistematicamente de quem nasce fora do pacto racial dominante?

O biógrafo nega que a questão da negritude não tomasse muito tempo de Machado:

— Ele nunca foi absenteísta. A militância de Machado de Assis, bem diferente das estratégias adotadas por Lima Barreto ou Luiz Gama, não se deu no confronto aberto e sim na estratégia silenciosa forjada pela sobrevivência de um homem negro na Corte imperial. Ele conseguiu converter o silêncio imposto por sua origem em arma estética, entre outros fatos.

Mas e o tal branqueamento, de que tanto se fala?

— Essa questão toca no ponto nevrálgico da leitura contemporânea de Machado: a desconstrução do mito do gênio desracializado. O branqueamento, ou desracialização, consistiu em um apagamento meticuloso, ritual, estrutural e institucional, destinado a fabricar uma imagem pública que parecesse alheia à cor de seus autores. Machado tinha plena consciência desse risco. Ele percebia com agudeza tanto o apagamento quanto o racismo estrutural que o cercavam, não foi um mero espectador desse processo. Ao contrário, foi um estrategista do silêncio. Criou uma obra complexa, ambígua e resistente, lutando para inscrever seu nome na própria estrutura da língua, onde não se pudesse apagá-lo.

Leitura longa

Pela experiência profissional do seu autor, tão afeito ao garimpo de informações em grandes bancos de dados, não há de se estranhar que a biografia vá fundo em datas, personagens e acontecimentos. Para além da negritude, outras questões são tocadas em profundidade, como a origem da família no Rio de Janeiro do século XVIII e tudo que cercava a vida cultural de um jovem negro que saiu do Morro do Livramento para estabelecer seu lugar na História do país. Tudo bem documentado.

“Machado — O filho do inverno” será lançada em 2 de dezembro, às 17h30, na ABL (Avenida Presidente Wilson 231, no Centro do Rio).

Aliás, por que chamá-lo de “filho do inverno”? Simples: Machado nasceu exatamente no dia do solstício de inverno, 21 de junho.

— Em algumas crônicas, ele se descreve, com ironia e ternura, como filho do inverno, chegando a dizer que o leitor poderia até lhe enviar presentes nessa data. “Filho do inverno” me pareceu a imagem perfeita para esse tempo de formação — explica o biógrafo.

 

‘Machado — o filho do inverno’

Autor: C. S. Soares.

Editora: Ação.

Páginas: 640. Preço: R$ 129,90.

 

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/11/23/nova-biografia-de-machado-de-assis-propoe-releitura-de-vida-e-obra-do-autor-tendo-negritude-como-pano-de-fundo-para-entender-sua-genialidade.ghtml

24/11/2025