Ao descerem as cortinas da brilhante atuação de Marcos Vilaça na presidência da Academia Brasileira de Letras, marcada pelo dinamismo e por uma torrente de eventos culturais, a Casa de Machado de Assis, como a chamam os acadêmicos, editou uma bela obra sobre seus 110 anos de existência.
Emociona viajar no tempo através de suas 454 páginas. Assim como o Louvre de Paris, que possui um museu a respeito de si mesmo, a ABL publicou a sua história. Começou em 1897, presidida por seu fundador, o bruxo, lugar hoje ocupado por Cícero Sandroni.
Lendo a obra, tive a certeza que a Academia representa e sintetiza um encontro da arte com a história. Tanto assim que, por coincidência ou não, de seu nascimento até 1906, Machado presidiu e seu secretário geral foi Joaquim Nabuco, grande figura política, líder maior da campanha pela abolição da escravatura. No Petit Trianon também a figura do gigante chamado Rui Barbosa. Outra extraordinária presença na luta pela liberdade, para sempre na memória brasileira.
Onze anos depois de criada a Academia, morria Machado de Assis, a 29 de setembro. O centenário de sua morte ocorre este ano. Euclides da Cunha, que a tragédia levaria poucos anos depois, publicou artigo comovente. E na beira do túmulo, o senador Rui Barbosa deixaria eterna a exatidão de uma idéia: não é só o clássico da língua; não é só o mestre da frase: não é o árbitro das letras e o filósofo do romance.
Não é apenas o mágico do conto, o joalheiro do verso. Não é só o exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber e no dizer. Acrescentou: é o homem que soube viver intensamente a arte, sem deixar de ser bom, sem esquecer a condição humana. Está excelente a edição da ABL. Com os textos e fotos de 110 anos da Academia Brasileira de Letras, pode-se visitar à vontade o passado, percorrer-se a história de mais de um século, cruzar a ponte da política, tudo isso pelo caminho da arte e suas várias expressões.
Esta arte, esta mesma história, tão eternas quanto o ser humano. A arte e a história possuem magia tão misteriosa quanto insuperável. Para exemplo definitivo, podemos citar duas cidades do mundo: Jerusalém, de mais de três mil anos, hoje capital de Israel, e Florença, Itália, região da Toscana. Em Jerusalém, nasceram as religiões judaica, cristã e islâmica do profeta Maomé. Um detalhe: o cristianismo é 300 anos mais antigo que o catolicismo. Este só surgiu na ata de Milão, com o imperador Constantino, três séculos depois do desfecho da cruz.
Em Florença, que já completou mil anos, nasceram Dante Alighieri, no século 13, Gioto e Donatelo, no século 14, Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Tintoreto, Maquiavel, Américo Vespúcio no século 15. Galileu no século 16, Marconi, inventor do rádio, no século 19. A cidade, berço da Renascença, tem que possuir forte magia em torno de si. Lá, também no século 15, nasceu Giorgio Vassari, notável escultor e arquiteto, que projetou o túmulo de Michelangelo, que está na Igreja de Santa Crochê.
Uma obra de arte para um grande artista. Magia está presente também, é claro, nas ruas, praças, teatros, cafés de Paris, na casa de Richelieu, Petit Trianon, que inspirou a réplica da Avenida Presidente Wilson, no Centro do Rio. Nas fotos, vou percorrendo o livro: casacas, cartolas, fraques, chapéus que atravessaram algumas épocas, coletes, colarinhos engomados altos, gravatas antigas, bengalas, estas símbolo de apoio e de expressionismo nos gestos ensaiados pela intelectualidade. Marcavam a veneração pelas grandes atitudes. Isso nos salões.
Nas urnas, 1910, campanha civilista. Rui Barbosa perdia a Presidência da República para o marechal Hermes da Fonseca. Nesse mesmo ano, nascia a primeira revista da ABL. O Brasil tinha apenas 20 milhões de habitantes. Votaram somente 800 mil, quatro por cento. Hoje, para uma população de 190 milhões, há 127 milhões de eleitores: 66 por cento. A história da participação política viaja assim. A arte também.
Na memória da ABL, na qual 110 anos nos contemplam, estão episódios os mais diversos. A posse de Álvaro Lins, por exemplo, que incrivelmente fez o presidente Juscelino esperar por mais de uma hora aguardando a chegada do novo acadêmico. Também na década de 50, o inusitado que marcou a posse de José Lins do rego. Cortou radicalmente uma tradição que sobrevive até agora. Em vez de destacar a obra de seu antecessor, Ataulfo de Paiva, ministro do Supremo e avenida do Leblon, atacou violentamente sua qualidade literária. Por isso perdeu a coluna que mantinha em "O Globo".
Roberto Marinho, ainda não integrante da ABL, mas amigo de Ataulfo, o demitiu do jornal. Há ainda, na história da ABL, a posse e a morte de Guimarães Rosa. O escritor previu que morreria logo após assumir. Foi o que aconteceu. Ficou encantado. São capítulos que Marcos Vilaça editou, pedaços da vida.
A obra é imperdível.
Tribuna da Imprensa (RJ) 7/4/2008
07/04/2008 - Atualizada em 06/04/2008