Bibliófilo de 93 anos participa de encontro com crianças em fase de alfabetização e diverte-se com as perguntas feitas por elas
Livia Deodato
Tarde ensolarada de segunda-feira. Cerca de 15 crianças muito bem-comportadas entram, a passos lentos e em fila, em uma livraria toda colorida, dedicada exclusivamente a elas - a Casa de Livros, localizada na Chácara Santo Antônio. Vão-se acomodando, uma a uma, num tapete todo costurado em retalhos. Seguram em suas mãozinhas uma tira de papel, na qual guardam uma preciosa pergunta, que foi pensada por cada uma delas e será dirigida a um notável senhor com quem têm encontro marcado. Ninguém melhor para incentivá-las a entrar no fantástico mundo dos livros: o bibliófilo José Mindlin, que acaba de completar 93 anos.
Antes de iniciar o bate-papo, Maria Angela Prado de Melo Aranha, sócia da livraria ao lado de Denize Bianchi Silveira Carvalho, conta às crianças, que têm em média 6 anos, um pouquinho da história da vida de Mindlin, ocupante da cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras. "Ele tem a maior biblioteca particular do Brasil e a gente achou que a paixão dele por livros poderia ser passada a vocês." O silêncio mantido pelos pequenos desde o início do encontro chegou a causar espanto em Mindlin, levando-o a dar um belo conselho (que só não deve agradar muito aos respectivos pais). "Mas vocês estão muito quietos e bem-comportados! Deixem para ser mais sérios assim quando vocês crescerem!"
Acrescente-se a essas palavras mágicas o aviso de que bolinhos de chuva com guaraná seriam servidos ao fim do encontro. "Ebaaa! Eu adoro bolinho de chuva!", exclama, em alto e bom som, Isabella de Andrade, quase instantaneamente. Aí estavam os dois motivos que faltavam para a garotada ficar mais à vontade para começar a ?sabatina?. Max Pinheiro de Aquino, de 6 anos, é o primeiro a fazer a sua pergunta. "Por que você resolveu conversar com as crianças?" O sempre muito bem-humorado Mindlin solta um leve sorriso, transparecendo um rápido resgate ao seu tempo de menino. "Eu ainda tenho muito de criança dentro de mim, de modo que gosto de ouvir o que outras crianças têm a dizer. Conversar com vocês me dá muito prazer."
As professoras da Casinha Pequenina, unidade referente à educação infantil do Colégio Friburgo, onde os meninos estudam, contam que ?trabalharam? a biografia de Mindlin antes do encontro, que teve por objetivo reforçar o convite ao descobrimento do mundo encantado que existe por trás do código literário. "Nós ajudamos os alunos a elaborar as questões e orientamos no sentido do respeito à pessoa mais velha, que tem um ritmo muito diferente do nosso. Perguntei a eles, por exemplo, ?vocês acham que ele vai gostar de uma algazarra, de gritaria??, ao que todos concordaram que não...", conta a professora Sonia Tieppo, que há 27 anos trabalha com educação, justificando as boas maneiras até demasiadas da garotada.
É a vez, então, da Isabella, a garota que adora bolinhos de chuva, lançar a sua pergunta, de caráter um pouco mais pessoal: "Qual é a sua comida preferida?" Ao responder que gosta de tudo que na receita leva ovo, Mindlin acaba dividindo opiniões e se diverte com as feições contorcidas que provocou em alguns. "Gosto muito de ovos quentes e também bala de ovo. Aliás, qualquer doce que tenha ovo como ingrediente me atrai", detalha. Ouve-se, baixinho, um "urgh!" Para completar o cardápio, só mais uma perguntinha. Bebida favorita? "Quando era rapaz adorava frapê de coco. Agora gosto bastante de tomar vinho e guaraná, mas ainda assim não supera o meu gosto pelos livros", rebate.
A coleção de aproximadamente 50 mil obras, entre valiosos tesouros como a primeira edição de O Guarani, de José de Alencar, e o original de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, também foi alvo da curiosidade dos meninos em processo de alfabetização. Além de contar como formou todo esse acervo ao longo dos anos, Mindlin fez questão de enfatizar que não gosta do rótulo de ?colecionador?. "Eu gosto muito de ler e quando a gente começa a ler um livro que gosta, não tem vontade de parar. Este livro acaba levando a outro e mais outro. Com o passar do tempo, acaba-se juntando uma grande quantidade. Mas isso não é colecionar. Quem coleciona não lê e, aliás, não sabe o que está perdendo." Em dezembro do ano passado, Mindlin doou cerca de 17 mil títulos, exclusivamente brasileiros, à Universidade de São Paulo, onde está sendo construída a Biblioteca Guita e José Mindlin, prevista para ficar pronta no ano que vem.
No encerramento do encontro, o bibliófilo pede quatro nomes para incluir como personagens na história que vai contar - e que deve integrar, em breve, uma coletânea prevista para ser lançada pela Editora Ática. Todos levantam a mão e entram na disputa por um papel. Um longo conto sobre a filha do imperador da China, Ling Long, rico em cores, sons e cheiros, vai sendo desfiado. Sua neta, Ana Mindlin Xavier, que também está lá presente, já ouviu várias vezes essa história e ainda assim não se cansa. "Eu adoro essa história e a do Papico." Antes de ir embora, Diana Mindlin, que foi acompanhar o pai nesse delicioso bate-papo, presenteou a sobrinha com o livro O Homem Que Contava Histórias, de Rosane Pamplona. Nem tudo é mera coincidência.
O Estado de S. Paulo (SP) 4/10/2007
04/10/2007 - Atualizada em 03/10/2007