Natália Rangel
O escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), autor de clássicos como Quincas Barba e Memórias Póstumas de Brás Cubas, não foi sempre o homem sisudo que seus biógrafos descreveram. Foi também irreverente, boêmio, afetuoso e assíduo freqüentador da cena teatral no Rio de Janeiro no final do século XIX - e os amigos a ele se referiam pelo apelido carinhoso de Machadinho. Esse retrato, distante da imagem de homem austero e ensimesmado, assim meio Dom Casmurro, é revelado agora em cartas inéditas que estão sendo organizadas, junto à Academia Brasileira de Letras, pelo embaixador e escritor Sérgio Paulo Rouanet, ex-ministro da Cultura.
Com lançamento previsto ainda para este semestre, o livro faz parte das homenagens que acontecerão ao longo deste ano em que se comemora o centenário de morte do escritor e, por isso, batizado de Ano Nacional Machado de Assis. Para Rouanet, as cartas mostram que o Bruxo do Cosme Velho (local em que sempre morou) era muito politizado: "Tinha idéias bastante liberais, o que contrasta com o estereótipo criado de um autor alienado, indiferente às grandes questões que agitavam a época." Machado também adorava uma roda boêmia: "Tinha um círculo de companheiros descontraídos, que conversavam sobre literatura e atrizes francesas, e estavam habituados a trocar confidências sentimentais." Foi provavelmente em uma dessas noites animadas que o escritor viveu o único caso extraconjugal de seu casamento com Carolina - uma rápida paixão por uma atriz chamada Inês. A traição coincide com o período em que Carolina enviou cartas a parentes, relatando que sentia o seu casamento abalado.
Na incansável investigação histórica conduzida por Rouanet, as cartas foram sendo encontradas em diferentes endereços. Uma parte delas, na própria Academia Brasileira de Letras, da qual Machado foi fundador e presidente. Outras estavam na Biblioteca Nacional, no Ministério das Relações Exteriores e na Casa de Rui Barbosa. O projeto contou com a colaboração de colecionadores particulares. O empresário e bibliófilo José Mindlin cedeu uma carta de Machado a Euclides da Cunha, e Mario Alves de Oliveira disponibilizou duas de Machado dirigidas ao jornalista português Julio César Machado. A maioria da correspondência trocada com Carolina, que faleceu dois anos antes dele, foi queimada a pedido de Machado - pedido que ele fez dois dias antes de morrer.
Suas cartas também desfazem o estereótipo de sua frieza nas relações pessoais. Tanto as escritas na juventude quanto as da maturidade são extremamente afetivas. Machado de Assis, que raramente deixava o número 172 do Cosme Velho (ele, no máximo, viajava a Friburgo), teve mais de 150 correspondentes. Como muitos eram diplomatas, eles lhe escreviam de diversas partes do mundo. "O meu favorito, entre os (correspondentes) estrangeiros, é um certo Louis-Pilate de Brinn'Gaubast, que escreveu de uma cidade com o nome extraordinário de Avzianopetrowski", conta Rouanet. Se a grafia já não é simpIes hoje, imagine identificá-Ia num papel envelhecido por mais de 100 anos.
A leitura das centenas de correspondências é trabalho árduo, exige lupa e muita paciência. É uma leitura difícil, porque as mais antigas tem pelo menos 140 anos e há inúmeras palavras e linhas quase ilegíveis. A professora e escritora Sílvia Eleutério, especializada em Machado de Assis, faz a leitura e a adequação ortográfica das cartas: "É um trabalho minucioso e sempre revelador. Machado vai se desencantando com a maturidade." E Rouanet complementa: "O lado jovial vai sendo reprimido. É que o Machadinho vai se transformando em Machado de Assis. O quarentão circunspecto está plenamente inserido na sociedade oligárquica e convive muito bem com o regime do pistolão e do favor", diz ele, referindo-se a uma carta em que um amigo pede um emprego ao escritor, que era secretário de ministro.
Confusões domésticas divertidas também vêm à tona. Certa vez o casal Machado e Carolina viajara para Friburgo e deixara em casa a cadela de estimação, Graziela. Eis que a cachorrinha foge. Telegramas e cartas são trocados entre o casal e um vizinho para que as devidas providências fossem tomadas: colocar anúncio no jornal e na vizinhança descrevendo a cadela e oferecendo recompensa a quem a devolvesse. O drama teve final feliz: a cachorrinha foi entregue sã e salva. A empreitada de organizar esses livros foi movida por uma admiração incondicional de Rouanet e sua equipe pelo trabalho de Machado. Mas não é só isso. "Também tem uma certa bisbilhotice", diz Rouanet, autor do recém-Iançado Risos e melancolia, no qual ele discute justamente a obra de Machado de Assis.
Revista Istoé (SP) 23/1/2008
23/01/2008 - Atualizada em 23/01/2008