No centenário da morte do escritor, o Cultura publicará no último domingo de cada mês depoimentos de artistas sobre sua relação com a obra do mestre da literatura nacional
Lygia Fagundes Telles, escritora
Eu estava na faculdade de Direito quando li pela primeira vez Dom Casmurro, uma edição que comprei em um sebo. Achei, então, que Capitu era uma santa, uma pobrezinha; e ele, Bentinho, um neurótico, um doido varrido, histérico. Conversei com as minhas colegas, éramos seis mulheres, sobre a leitura, e eu dizia: ''''Não pode isso, esse homem é um louco, neurastênico, desesperado, casado com uma santa em que via a traição.'''' Enfim, não li mais o livro. A segunda leitura foi na maturidade. Estava casada com o Paulo Emílio Sales Gomes e preparávamos Capitu (roteiro filmado por Paulo César Saraceni). Reli o livro e disse ao Paulo: ''''Mudei completamente de idéia, a mulher traiu ele sim, o filho não era dele.'''' E ele me perguntou: ''''Você tem certeza? Cuco, você não pode ser juiz, temos que suspender o juízo, como o próprio Machado queria.'''' E eu: ''''Mas eu não posso suspender, esse homem é um doido, coitada dessa mulher.'''' ''''Cuco, não vista a toga de juiz. Vamos apresentar o roteiro como está no livro. Você está ficando com a cara do Bentinho!'''' ''''E você então está me traindo'''' (risos).
E hoje: Capitu traiu Bentinho?
Eu já não sei mais (risos). Minha última versão é essa, não sei. Acho que enfim suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; na segunda, um monstro. Agora, na velhice, eu não sei. Só tem uma coisa que eu ressalto. Estava conversando com minha neta outro dia. Bentinho fica sabendo que o filho, aquela criança linda, que tanto o amava, é filho de Escobar, que era uma beleza de homem. Vamos aceitar a opinião de Bentinho, o filho então não é dele. Mas ele fica sabendo que o filho morreu e escreve: ''''Jantei bem e fui ao teatro.'''' Não gostei disso, achei duro demais. Mesmo que o filho não fosse dele, ele não podia ''''jantar bem''''. Eu disse ao Paulo Emílio: ele não podia ter ido comer bife e batatas logo depois de saber da morte do menino. É muita frieza. E o Paulo: ''''Não é frieza. Ele via o Escobar no filho, não podia ter ficado triste.'''' Nós dois quase brigamos (risos). O Paulo entrava na escrita machadiana para preservar a dúvida, o oculto, o encoberto. Machado adorava isso, nada aparecia claramente. Dizia o Paulo: ''''Se para o Bentinho o filho não era dele, podia até sair para dançar aquela noite.'''' E eu reclamava: ''''Isso é horrível, Paulo, precisa entrar na sua cabeça que se ele desejava tanto o filho, amava tanto a Capitu, não podia ir ao teatro e jantar bem.''''
Você tem uma cena preferida?
Para mim, a cena principal é o momento em que Escobar está morto no caixão, a viúva se aproxima e olha firmemente para o morto; Capitu faz o mesmo - e as duas têm o mesmo olhar. Bentinho estremece inteiro. Olha para as duas e reconhece nelas a mesma expressão. Essa é a cena de um artista maduro. Disse em uma entrevista certa vez que achava Dom Casmurro mais importante que Madame Bovary. Nele há a dúvida, enquanto a Bovary tem escrito na testa que é adúltera. O Wilson Martins me passou um pito em um artigo (risos). Mas eu continuo achando. Mas pode ser que Bentinho estivesse enganado, doido, neurótico, olhou para as duas e viu a traição da mulher que perdia o amante onde poderia ter visto uma amiga sentindo a perda de uma pessoa querida.
Lembro de um episódio interessante. Não me recordo em que ano foi, mas eu já estava casada com o Paulo. Fizeram uma enquete perguntando a homens e mulheres se Capitu tinha ou não traído Bentinho. Você sabe que as mulheres acharam que ela era amante e os homens ficaram na dúvida? Contei para o Paulo, que disse: ''''Mulher não gosta mesmo de mulher, quem gosta de mulher é homem.''''
Quantas vezes você leu o livro?
Ah, várias. E agora que você me provocou com esse depoimento fui olhar de novo. Peguei também o roteiro de Capitu e um livro importantíssimo, Antologia Filosófica de Machado de Assis, do Miguel Reale. O Machado conhecia os filósofos todos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Hegel, Goethe, lia tudo. O Reale insiste na paixão de Machado pelo Eclesiastes. Você me obrigou a relembrar. Foi bom você me provocar, entrei de novo na aura machadiana. De repente escrevo um livro sobre ele.
Depoimento a Ubiratan Brasil.
O Estado de S. Paulo (SP) 27/1/2008
27/01/2008 - Atualizada em 27/01/2008