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O homem que ama os livros

 

Aos 94 anos de idade, o bibliófilo José Mindlin tem uma verdadeira devoção pelos livros, que começou aos 13 anos, quando leu o primeiro, Discours sur l´Histoire universelle, de Jacques Bénigne Bossuet, editado em 1740. Depois disso, não largou mais os livros. Lê-los, e também colecioná-los, chegando a ter um acervo de nada menos que 20 mil títulos, com um total de 45 mil volumes, ele explica de uma forma simples: “Trata-se de uma compulsão patológica, tanto a aquisição como a leitura”.

O homem que ama os livros, filho de pais russos, que imigraram para o Brasil no começo do século passado, também teve uma vida empresarial ativa, fundador da Metal Leve, fabricante de autopeças. Advogado, ele até dá a pista de como ter essa compulsão patológica pelos livros: “Primeiro se começa com as edições comuns. Depois vem o interesse pelo livro bonito, com ilustrações e bem diagramado. A próxima é a busca das primeiras edições de um determinado título. Passa-se, então, a procurar exemplares autografados. A última etapa é a consciência da raridade. E aí você está definitivamente perdido”.

Empenhado em democratizar o acesso ao livro, José Mindlin, que é membro da Academia Brasileira de Letras, acha que o melhor caminho para que isso aconteça é aumentar o número de bibliotecas públicas, que deveriam funcionar à noite e em fins de semana.

Mecenas, ele dá um exemplo da dimensão do seu caráter, doando todo o seu acervo à Universidade de São Paulo (USP).

Entrevista - José Mindlin

- Como foi a aproximação do senhor com os livros?

- Eu cresci em um ambiente cultural, de modo que desde a infância eu tive contato com os livros. Não houve um momento determinante. Em casa, quando eu era menino, havia uma biblioteca ocupando uma parede da sala e eu ficava extasiado diante dos livros, mesmo antes de aprender a ler. Até o dia em que eu peguei um livro e comecei a manusear páginas e a murmurar como se estivesse lendo textos. O meu pai, percebendo tudo aquilo, chegou perto e perguntou o que eu estava fazendo. Respondi-lhe, então, que estava lendo. Perplexo, ele comentou: “Mas você ainda não aprendeu a ler!”. Fiquei desapontado, mas jamais esqueci essa observação do meu pai. Houve uma atração pelo livro desde a minha infância...

- Qual era esse livro que estava “lendo”?

- Era um livro infantil, Saudade, do Tales de Andrade, que na Escola Americana recomendavam que a gente lesse. Foi um dos primeiros livros que eu li.

- E depois que foi alfabetizado, como ficou sua relação com os livros?

- Aos 13 anos descobri os sebos, onde encontrava preciosidades. Ia a todos em São Paulo, revirando as prateleiras, passava horas e mais horas, com a paciência de garimpeiro. Recordo-me que a primeira pepita que encontrei, na forma de livro, em 1927, foi uma preciosidade, sem dúvida nenhuma. Tratava-se de uma edição portuguesa do discurso sobre a história universal, de Bossuet, impresso em Coimbra, em 1740. Com a idade que eu tinha naquela época, era mesmo uma preciosidade, embora, na verdade, não fosse uma edição importante da forma que eu a considerava.

- Onde era que o senhor mais garimpava?

- Percorria sempre os livreiros da Praça da Sé, mas, mesmo adolescente, percebi um detalhe entre eles, muito curioso...

- Qual era?

- Um mantinha distância do outro, levavam muito a sério a concorrência, sem qualquer comunicação. O resultado disso eu constatei a partir do momento em que me deparei com a seguinte realidade: um livro de cinco mil réis, para citar apenas um exemplo, custava em outro sebo 50 mil réis. O que eu fiz? Comprava o de cinco mil réis e o vendia ao concorrente por 50 mil réis. Não recebia em dinheiro, mas recebia créditos para adquirir muitos livros. Durante dois anos eu lancei mão desse recurso, porque eles acabaram percebendo a esperteza daquele garoto que amava tanto os livros.

- Mas qual foi o primeiro livro que o empolgou?

- História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador.

- Estudar francês na infância ajudou em sua formação literária?

- Sim, não tenho a menor dúvida, até porque o francês passou a ser a minha segunda língua. Comecei pela literatura infantil, no gênero Tico-Tico, mas, logo, logo, já lia a Condessa de Ségur.

- Deu para ler todos os livros que desejou?

- Eu costumo afirmar que gostaria de viver 300 anos, porque poderia ler de 25 a 30 mil livros. Mas leio, sempre, cada vez mais de forma voraz. Não tem hora nem lugar para ler. Carrego sempre um livro debaixo do braço. Para enfrentar tanto engarrafamento no trânsito de São Paulo, fico lendo no carro.

- A impossibilidade de viver 300 anos para ler tantos livros o frustra?

- Não, depois refleti muito e cheguei à conclusão de que muitos livros seriam lançados, sem que houvesse tempo para lê-los.

- Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, já era sua leitura na adolescência?

- Li Dom Quixote já na fase adulta. Foi uma leitura apaixonante, eu li primeiro em tradução francesa e depois li em espanhol. Trata-se de um livro fascinante, que instiga a imaginação ao ponto de ter a impressão de estar participando de tudo aquilo que ele escreve.

- Prevalece o equilíbrio entre a realidade e a fantasia?

- Sim, sem dúvida nenhuma!... Tanto existe que, mesmo quando aparece a fantasia, a gente tem a sensação de estar vivendo aquele episódio imaginado por Cervantes. É o maior livro de uma narrativa de grande familiaridade para o leitor.

- O Sancho Pança é visto assim como caricato, mas é um personagem que cresce no desenrolar do romance. O senhor concorda?

- Ah, não, ele não é nada caricato! Ele tem um bom senso de humor, mas é bastante realista na narrativa. São todos os episódios, não digo em ambos, mas boa parte são episódios perfeitamente plausíveis e possíveis. Outros são de pura imaginação, mas é uma narrativa que apaixona.

- Quando Sancho Pança renuncia ao cargo de governador da ilha Baratária, pedem um relatório e ele responde afirmando que não ia fazê-lo, porque entrara pobre e saía pobre. O que o senhor acha disso?

- Eu acho que cargos, como o de Sancho Pança, são seus. Hoje, em boa parte dos casos, não poderia dizer isso. Infelizmente, a seriedade não é uma característica hoje em dia de muitas atividades. Mas existem, sim, os governadores honestos, que podem prestar suas contas direitinho.

- Além de Miguel de Cervantes, quais são os seus escritores preferidos?

- Marcel Proust, Machado de Assis e Guimarães Rosa.

- O senhor tinha entre os escritores famosos alguns amigos, como o Carlos Drummond de Andrade, que lhe fez uma dedicatória muito carinhosa. Como foi?

- Referia-se a uma menção que fiz a seu respeito: “Caro Mindlin, você me trouxe este testemunho da minha mocidade, mas por que não me trouxe a própria mocidade?”.

- Por que o senhor defende a tese de que os bons livros deveriam ser proibidos, porque existem os ótimos?

- O que aconteceu foi que um dia falei isso, mas é uma utopia, porque simplesmente não há como determinar quais são os livros que são bons, regulares e excelentes. Qualquer livro vale a pena ser lido, porque a leitura, sem dúvida nenhuma, é um dos melhores prazeres da vida. O importante é ler o primeiro e ir em frente. Com o tempo, naturalmente, surge o controle de qualidade na leitura. A conseqüência disso é ficar cada vez mais seletivo, porque o tempo é essencial, prevalecendo, e sempre, a liberdade intelectual.

- Como o senhor vê o Brasil de hoje?

- O Brasil de hoje não é distante da crise mundial que se está atravessando, em que fatores morais passaram para um plano secundário. Mas não dá para generalizar. Eu acho que em todas as épocas, inclusive a de hoje, existem o bem e o mal.

- Mas parece que o mal está ganhando essa luta.

- Não. Nem vai ganhar. É uma coisa acidental. Eu sou um otimista incorrigível em relação à humanidade.

- Existem casos e mais casos, um certo “denuncismo”. Juscelino Kubitschek, por exemplo, foi acusado de ser dono da sétima fortuna do mundo, mas morreu pobre...

- Eu continuo acreditando no julgamento da história, que irá fazer justiça ao Juscelino Kubitschek, que foi um grande estadista. Quando ele estava exilado, em Nova York e Paris, mantivemos alguns encontros. Ele levava uma vida muito modesta, se hospedava em hotéis simples.

- O que o senhor destacaria, hoje, sobre o Juscelino Kubitschek?

- Ele foi o primeiro presidente brasileiro que procurou estabelecer um diálogo com os Estados Unidos, de igual para igual. Estou convencido, vale acrescentar, de que ocorreu um desencontro histórico entre o Brasil e os Estados Unidos, quando Dwight Eisenhower foi presidente. Depois, John Kennedy assumiu a Casa Branca, e o que avalio hoje é que, se fosse na época do Juscelino, muita coisa teria sido diferente...

- Juscelino saiu, Jânio o sucedeu, acabou renunciando, abrindo espaço para João Goulart. Veio a revolução dos generais. Houve participação dos empresários no golpe?

- Toda generalização é perigosa. Ocorreu naquela época, nos primeiros anos da década de 60, que alguns defendiam apenas os seus interesses, mas também aqueles que tinham espírito público muito sólido. Eu, pessoalmente, lamentei o fato de o Jango não ter concluído o seu governo. Aconteceu com ele o que ocorreu com Salvador Allende. Se o Allende tivesse concluído o seu governo, o Chile teria voltado à normalidade, sem grandes dificuldades. Com Jango, também ocorreria o mesmo. O seu problema foi oscilar entre a direita e a esquerda, em um jogo político muito perigoso, até perder completamente o controle.

- O senhor tem um conceito sobre o que vem a ser o poder?

- Acredito que algumas pessoas procuram ocupar cargos políticos com idealismo, determinação em realizar projetos, sem se preocupar com o poder. O Delfim Netto, que é um homem muito inteligente, afirmou uma vez que poder era uma coisa que precisava querer e gostar. Ou seja, que precisava pensar em poder desde a hora que acordasse até a hora de adormecer. Espirituoso, até concluía com uma observação: “Eu durmo muito pouco!”

- Qual a interpretação que o senhor faz disso?

- O Delfim Netto nunca escondeu o desejo do poder, que eu não sei se foi coisa da vida inteira ou se surgiu na hora em que entrou na política. Quando era professor universitário, nada indicava que ele tivesse essa ambição. O poder é uma coisa perigosa. Não é por acaso que se afirma que o poder corrompe, e que o poder absoluto corrompe ainda mais. Platão, por exemplo, já afirmava que o governo ideal era o do déspota esclarecido. O que é uma coisa impossível de acontecer, porque o esclarecido desaparece rapidamente e fica o déspota.

- Durante o regime militar, o senhor jamais foi submisso aos generais. Isso lhe causou problemas, como empresário?

- Eu tinha minhas opiniões e as mantinha politicamente de forma clara. Na empresa, procurava manter uma postura de independência com relação ao governo, com uma certa distância, sem pedir favores ou assumir dívidas. Todas as minhas opiniões políticas eu manifestava fora da empresa, como um cidadão comum. Isso não significa que não mantivesse bom relacionamento com algumas personagens do governo militar.

- Cite um exemplo.

- O Mário Henrique Simonsen, o Delfim Netto, eles foram meus interlocutores freqüentes, mas jamais, em nenhuma ocasião, tratei de qualquer assunto da minha empresa com eles. Sempre preservei a minha independência pessoal e a defesa das minhas idéias. Quando me manifestava politicamente, não atacava pessoas. Criticava apenas idéias.

- Em momentos de crise, como o atual, o que o senhor aconselha?

- O mais indicado é ter otimismo, manter a cabeça fria. Quando não existem problemas, atuais ou previsíveis, isso não é necessário. Preocupação excessiva não ajuda. Na realidade, são muito poucos os problemas que não se consegue resolver. E quando isso acontece, o jeito é conviver com eles, com uma certeza: o mundo não acaba tão cedo!

- Como o senhor vê, hoje, a globalização?

- A globalização revelou um desses jogos de aprendiz de feiticeiro: a gente sabe como começa, mas não sabe como acaba. Mas já dá para perceber que os países ricos pregando, e conseguindo, a abertura dos países emergentes, também pregam a abertura de seus próprios mercados, mas conservam todas as prerrogativas protecionistas.

- O senhor, que já viu tanta coisa, crises, guerras, como analisa o atual momento? O mundo vai sair disso?

– É claro que vai! A história do mundo tem milhares de anos em que houve períodos de crises e de grandes problemas, e ocorreram períodos de florescimento e de desenvolvimento material e espiritual, também. Primeiro, até que é uma coisa muito boa, e pode ser aproveitada e curtida.

- Por que as pessoas, hoje, são estressadas, deprimidas?

– Infelizmente, existem problemas materiais que afligem a todos nós e, às vezes, não dependem das próprias pessoas, mas da sociedade. Há tanta coisa boa no mundo que pode ser curtida que as pessoas têm que procurá-las quando enfrentam contrariedades, frustrações. Eu, em relação à contrariedade, tenho uma reação constante de que mesmo que esteja acontecendo uma coisa desagradável, poderia ser pior. Pensando nisso, a importância da contrariedade diminui muito.

- A sociedade moderna não é muito competitiva?

– Eu acredito na sociedade de hoje como eu acredito na de outras épocas, também, existem as coisas boas e as coisas más. E a pessoa tem que saber dosar as frustrações.

- O senhor contou, no início da entrevista, que desde cedo devorava livros. Hoje, com a Internet, existe a possibilidade de a literatura perder importância?

- Eu tenho, através de netos e alguns bisnetos, contato com a infância e a mocidade, constatando muito interesse por leitura, também. Não só pelo desenvolvimento tecnológico. Agora, tem que existir um exemplo em casa de leitura, para estimular as crianças. Não há regras para isso.

- Muita gente alega que não tem tempo para a literatura...

- Quem afirma não ter tempo, na realidade não procurou ler. É muito mais fácil não ler e afirmar que não teve tempo. Mas essas pessoas não sabem o que estão perdendo, porque a leitura é uma fonte de prazer permanente.

- O livro no Brasil é muito caro. Isso é um fator desestimulante?

- Ele é caro, custa muito dinheiro para uma grande maioria da população. É caro para produzir e para distribuir. Não existe exploração de um modo geral na questão da venda de livros. Agora, a solução seria abrir mais bibliotecas públicas, porque ler não devia depender de possuir um livro. Nos Estados Unidos, um país altamente desenvolvido, as bibliotecas são em grande quantidade e uma biblioteca particular não é regra. Uma boa biblioteca particular é exceção, em qualquer cidadezinha há uma boa biblioteca pública. Nós estamos longe disso, mas eu acho que é esse o objetivo que tem que ser procurado alcançar.

- O governo poderia ter a iniciativa de incentivar a leitura, reduzindo impostos das editoras, das gráficas?

- A impressão de livros tem uma série de sanções. Eu não conheço isso em detalhes, mas eu acho que há um incentivo. Agora, o grande incentivo é a formação de bibliotecas com bons bibliotecários que orientem os leitores, que mostrem o que há de interessante nos livros. Tudo é uma questão de formação de um hábito que preencha a biblioteca que, aliás, deveria existir também de modo generalizado nas escolas.

- Depois de montar uma biblioteca com 20 mil títulos, com 45 mil volumes, a qual conclusão o senhor chega?

- Casa vez mais estou convencido de uma coisa, muito importante. Que a gente passa, e os livros ficam...

Jornal do Commercio (RJ) 24/10/2008

26/10/2008 - Atualizada em 26/10/2008