Há cinquenta anos, o escritor brasileiro Ruy Castro aterrava em Lisboa para uma temporada de três anos como editor-executivo da edição em português da revista Selecções, da norte-americana Reader’s Digest que, graças aos insondáveis mistérios da tipografia, notou ser mais em conta produzir e imprimir a partir de Portugal para em seguida despachá-la de navio ao Brasil.
Um período que viria a ser crucial na formação do então jovem jornalista e futuro escritor, com 25 anos e “muito tempo livre” para consumir grande parte da literatura universal que depois se cristalizaria num vultoso manancial de cultura e na elegância da sua pena.
Uma equação que anos e muita tinta depois culminaria na eleição para a cadeira número treze da Academia Brasileira de Letras, tornando o jornalista de 75 o mais recente imortal a vestir o imponente fardão.
Três anos em Lisboa que também abarcaram o 25 de Abril, o qual Ruy Castro se orgulha de ter sido o único jornalista brasileiro a cobrir in loco. Um observador bastante atento como se perceberá a seguir. O repórter já ali investido das qualidades de biógrafo, paciente, atento aos detalhes e sensível às minúcias.
Um jovem Ruy Castro com o cravo vermelho no peito, um talismã que levou consigo no retorno ao Brasil, a flor de uma memória afetiva cultivada numa gaveta durante o passar dos anos. De passagem em Lisboa para lançar A Vida Por Escrito (Tinta-da-China), o escritor mineiro mais carioca do Brasil aproveitou o dia de folga agenda para refazer os passos da sua antiga rotina lisboeta e da experiência de ter testemunhado o 25 de Abril, uma experiência que dividiu com a Mensagem de Lisboa.
O que fez hoje em Lisboa?
Hoje estive em Campo de Ourique, na área onde morei, nos anos 1970. Tirei uma fotografia em frente ao meu antigo apartamento, na rua Carlos da Maia, esquina com a Artilharia 16. Era um apartamento grande, tipo um duplex, que herdei do antigo funcionário da Selecções que vim substituir em Lisboa. Antes dele, havia morado lá um arquiteto, que fez uma baita reforma e deixou-o moderno até mesmo para os padrões de hoje.
Como foi o convite para mudar-se para Lisboa, nessa altura?
A Selecções havia tido um problema burocrático qualquer no Brasil e decidiu transferir a operação da edição brasileira para Portugal. Eu trabalhava na revista Manchete e eles me convidaram para ser o editor. Achei que seria uma experiência internacional interessante. Aterrei em Lisboa em 3 de janeiro de 1973, com 24 anos, uma mulher grávida e uma filha pequena, sem saber ainda que era a melhor época para se estar em Lisboa.
Por causa do 25 de Abril.
Por causa do 25 de Abril, mas não só por isso. O trabalho na Selecções era tranquilo, pois a maior parte do conteúdo era enviado dos Estados Unidos. Praticamente, consistia em encaixar as histórias na revista, o que levava quinze dias para fazer. Tinha então os outros quinze dias livre para investir em livros, cinema e música. Os três anos em Lisboa acabaram por contribuir muito na minha formação como jornalista e escritor. Muito do que escrevi em O Poder de Mau Humor, lançado em 1993, ainda foi fruto da biblioteca que construí em Lisboa.
Era a sua primeira vez em Lisboa?
Para viver, sim, embora já tivesse estado na cidade antes, em 1967. A visita fez parte de um prémio que venci na área de literatura, ainda como estudante universitário, patrocinado pela petrolífera ESSO. O primeiro lugar ganhava um mês de estudo na Universidade de Coimbra e o segundo, um milhão de cruzeiros antigos. Parece muito, mas naquela época não era, embora fosse o suficiente para sair da casa dos meus pais, o que mais queria com 19 anos. Escrevi umas cinquenta laudas sobre a linguagem literária em Guimarães Rosa e Oswald de Andrade e, quando o telefone tocou e a voz do outro lado disse que havia ganho o prémio, perguntei, excitado: “O segundo lugar?”. Aí, ele disse: “Você não está entendendo: você venceu o prémio”. E eu pensei comigo mesmo, caraças, o que eu vou fazer em Coimbra?
E o que você fez em Coimbra?
Antes de Coimbra, passei por Lisboa, onde ficava o escritório da ESSO em Portugal, ali no Marquês de Pombal. Circulei ainda um pouco e foi aí que conheci a cidade pela primeira vez. No outro dia, peguei um trem em Santa Apolónia para Coimbra. Cheguei lá, hospedei-me numa daquelas pensões para estudante e comecei a frequentar o curso na universidade. Uma semana depois, literalmente fugi de Coimbra.
Como assim?
Você não está entendendo o que era Coimbra naquela época. Era um curso de verão, a cidade esvaziada dos estudantes. Não tinha nada para fazer, as aulas eram chatérrimas e os professores todos velhos e enfatiotados. Para ir ao banheiro tinha que erguer o dedo e perguntar: “Senhor doutor professor, posso ir à casa de banho?”. Com uma semana, já estava de saco cheio daquilo. A ESSO havia me dado uma ajuda de custo de 600 dólares e em uma semana não tinha gasto nem dez dólares, pois tudo era muitíssimo barato. Um colega de curso mais esperto me disse o seguinte: “Rapaz, pega um avião, desce em Paris, toma um táxi e vai direto à rua de Saint-Jacques que há centenas de quartos como esses para receber estudantes”. No outro dia, aterrava em Orly para passar um mês.
Ficou sem o prémio e ainda a morar na casa dos pais
Por pouco tempo. Logo após voltar do périplo Lisboa-Coimbra-Paris, fui convidado para trabalhar na Manchete, com um salário de 800 mil cruzeiros por mês, quase o valor total do segundo lugar do prémio.
De volta a Lisboa para viver, o que fazia nos 15 dias livres por mês?
Lia bastante. E passeava também. Vivia nas livrarias e nos alfarrabistas da Baixa. Naquele tempo, a Bertrand do Chiado era bem diferente, vendia uns livros estrangeiros pelo preço impresso na capa, livros de dez, vinte, trinta anos, com o preço desatualizado e baratíssimos. Ia religiosamente à Buchholz, também bem diferente de hoje, sofisticadíssima, uma maravilha de acervo de livros importados. Toda semana, comprava uma edição americana, que levava duas semanas para chegar. De forma que, com o tempo, semanalmente quando ia pegar uma encomenda, já encomendava outra. Foi aí que montei uma parte significativa da minha biblioteca e dos livros que me formaram como jornalista e escritor.
E passeava por onde mais?
Gostava de ir na Apolo 70, pois havia uma sessão de cinema aos sábados à noite com bons filmes. Ia mais cedo e passava um tempo no restaurante,que ficava na cave, observando a movimentação. Havia também uma biblioteca da Embaixada Americana na Almirante Reis onde ia bastante. Para além dos livros, disponibilizavam os discos em vinil dos musicais da Broadway. Fiz-me sócio de imediato. Em casa, havia um aparelho que gravava os discos em fita cassete. Depois, passava horas ouvindo aquelas maravilhas que havia gravado. Como disse, esse período em Lisboa foi importante na minha formação.
E deu tempo de fazer muitas amizades?
Nem tanto. Não havia jovens em Lisboa. As pessoas da minha idade, sem brincadeira, ou tinham ido embora ou andavam por aí mutilados de um braço ou uma perna, perdido na Guerra Colonial. Mesmo assim, conheci alguns vizinhos de bairro enquanto levava a minha filha para brincar no Jardim da Parada. Havia uma moça muito bonita que gostava de ler, mas era casada com um tipo estranho que eu tinha certeza ser da PIDE. Outro rosto comum era de um militar, que também falava pouco, e depois reconheci entre os Capitães de Abril.
Falando em PIDE, como jornalista, teve algum problema com a ditadura?
Que nada, a Selecções era uma revista americana, com fama de estar a serviço da CIA. Claro que éramos obrigados a enviar os textos para a censura, mas nunca houve nenhum problema, afinal, na Selecções ninguém trepava nem cometia adultério. O pior que podia acontecer era alguém ter um cancro, mas mesmo assim era uma história de um “cancro feliz”, do tipo the cancer made me happy. Uma realidade que mudou após o 25 de Abril.
Como foi testemunhar o 25 de Abril?
Foi uma surpresa, afinal na minha percepção de estrangeiro, a ditadura tinha durado 48 anos e parecia que iria durar outros 48. Na manhã do dia 25, quando acordei, a rádio só tocava umas marchas militares. Liguei para uma jornalista amiga minha que me disse mais ou menos o que estava acontecendo. Fui para a redação das Selecções a pé, pois não havia autocarros nem táxis. Cheguei lá e encontrei o diretor da revista, um tipo que tinha muito amigos entre os escritores fachos, trancafiado e com cara de assustado. Era daqueles que andava sempre arrumado, mas estava descabelado e com a roupa amassada, como se tivesse dormido por lá. Não havia o que escrever sobre o 25 de Abril, a revista não cobria esse tipo de notícia. Desci então até o Chiado e vi a revolução acontecer. Até um dia desses, ainda mantinha numa gaveta o cravo vermelho que uma mulher me ofereceu.
Uma testemunha que não podia escrever sobre o 25 de Abril.
Nem por isso. Era o único jornalista brasileiro em Portugal naquela época. Se chegou algum outro, foi depois, talvez depois de 1 de maio. Em frente ao prédio da Selecções ficava o escritório comercial da Manchete. Bati na porta deles e me ofereci para ser o correspondente da revista, que também não tinha repórteres por aqui. Durante seis meses, cobri os desdobramentos da revolução. Fiz várias matérias de capa, mas nenhuma matéria era assinada, para evitar problemas com os meus patrões americanos. Depois, a família Bloch, que mandava na revista, percebeu que a guinada da esquerda de Portugal era ruim para os negócios dele e enviou um jornalista para detonar o novo governo.
E quais foram os desdobramentos da revolução?
A primeira coisa foi que todo mundo começou a falar de política. Se antes ninguém abria a boca, depois só se falava de política em todo lugar. Lisboa também mudou para melhor. Até o 25 de Abril, nada acontecia por aqui. A televisão era horrenda, começava às quatro da tarde com uma aula de matemática, depois vinha uma missa e terminava com um telejornal alinhado ao governo. Logo no dia 25, o telejornal atrasou horas e, quando veio ao ar, em vez dos apresentadores todos engravatados, surgiram duas figuras de mangas de camisa, um deles a fumar. Era o sinal das mudanças. Lisboa de uma hora para outra virou um dos lugares mais interessantes para se estar no mundo. Começaram a chegar os exilados da América Latina, do Chile, da Argentina, do México, muitos deles brasileiros. E, claro, houve o movimento inverso, de fuga de portugueses alinhados ao antigo regime, principalmente para o Brasil. Diziam que depois do MFA, veio o MFB: o Movimento de Fuga para o Brasil.
O que o 25 de Abril mudou na sua vida lisboeta?
Com a esquerda no poder, a Selecções começou a ser meio que perseguida por ser um símbolo imperialista. Lembro-me de terem vandalizado o letreiro luminoso da revista com uma pedra. As empresas começaram a criar umas comissões de saneamento, de caça a antigos PIDE. Havia uma história de que se você entregasse um PIDE ganhava cem escudos de recompensa, se entregasse dois, duzentos escudos, e se entregasse cinco, ia preso, pois conhecia PIDE demais. A Reader’s Digest enviou um dos seus CEOs de Nova Iorque para medir a situação. Naquela altura, a empresa já não queria voltar ao Brasil, pois os custos de produção eram uma piada de tão baratos. Lembro de o chefão americano nos reunir e avisar que nada, por enquanto, ia ser feito. Let’s wait and see, disse.
Mas se não havia problemas e Lisboa era o melhor lugar do mundo, por que voltar ao Brasil?
O contrato era de três anos. Os americanos estavam doidos para renovarem, pois era o mais jovem editor em todas as revistas. Depois de mim, o mais novo tinha quarenta anos. Sabia que se ficasse, em dez anos estaria a trabalhar em Nova Iorque. Mas três anos era tempo suficiente para me esquecerem no Brasil. A decisão era voltar agora ou não voltar nunca mais. A minha segunda filha havia nascido, a minha esposa gostava da rotina em Lisboa, mas decidi voltar. Na minha cabeça, tinha vindo para Lisboa para passar três anos e o tempo havia terminado. Fiz a mudança e pouco tempo depois reestreava no jornalismo brasileiro na revista literária do Jornal do Brasil.
23/05/2023