Ocupante da cadeira de número 31 da Academia Brasileira de Letras desde 2003, Moacyr Scliar deu entrevista em seu apartamento em Porto Alegre
Patrícia Villalba
Agência Estado – RS
Médico que se tornou escritor ou um escritor que se tornou médico, o gaúcho Moacyr Scliar comemora seus 70 anos, que se completam no dia 23, cada vez mais convencido de que não há mesmo muita divisão entre sua obra, vida pessoal e trajetória profissional. Tanto que o título de sua autobiografia - "O Texto, Ou: A Vida" - remete à primeira vista ao menino que cresceu admirando profundamente escritores e acabou se tornando um deles. O livro, que chega na semana que vem às livrarias, pela editora Bertrand Brasil, mistura as memórias do autor a um apanhado de textos escolhidos, que acabam servindo como ilustração de sua própria história de vida.
Ocupante da cadeira de número 31 da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2003, Moacyr Scliar recebeu a repórter em seu apartamento, em Porto Alegre, para uma conversa sobre a escolha da medicina, literatura, inspiração, enfim, sobre a vida.
Como está recebendo os 70 anos?
Acho que o termo melhor talvez seja tranqüilidade. Tem muitas maneiras de ver os 70, é um aniversário que tem um conteúdo simbólico muito grande. Sou médico e, como médico, sei que isso significa, por exemplo, que a expectativa de vida no Rio Grande do Sul é de 70 anos. Então, é um limiar. Por outro lado, também significa que a gente acumulou um patrimônio cultural e espiritual formado por tudo o que a gente fez na vida. No meu caso, são os livros que escrevi e meu trabalho na saúde pública, mas também minha família, meus amigos. É claro que 70 anos inevitavelmente estão associados à velhice, que te remetem à limitação física e à inevitável lembrança da finitude, da morte. Por outro lado, eu me sinto muito bem. O segredo da coisa está em a gente ver a velhice com seus ganhos e suas perdas. E, no meu caso, o saldo é positivo.
No livro, o sr. fala sobre sua angústia infantil a respeito da eternidade, quando o menino judeu vai estudar num colégio católico e se depara com uma religião totalmente nova para ele. Não é no mínimo curioso que, tantos anos depois, tenha se tornado um imortal?
Essa coisa de imortal é curiosa. Ontem mesmo estava vindo do Rio, aliás, de uma reunião da academia, e quando entrei no avião me reconheceram e alguém disse "esse avião não vai cair porque tem um imortal a bordo". Sempre tem alguém que faz essa brincadeira. Sabe que, no fundo, as pessoas acreditam um pouco nisso, nessa coisa de imortalidade, de permanecer através da obra. Não é verdade. A academia não te promete a imortalidade, o lema dela é "para imortalidade", "ad imortalitatem" - eles prometem, mas não cumprem. Então, essa coisa de pensar em trabalhar para o futuro, para que te reconheçam daqui a 50 anos, é um sentimento ilusório. As pessoas devem viver atentas à realidade e tentar modificar essa realidade. É um sentido prático que eu adquiri trabalhando como médico. O escritor pode pensar mais a longo prazo, mas o médico tem de tratar do doente agora. Então, aprendi a resolver problemas agora.
O senhor fala também sobre a escolha da medicina, e dá para perceber que foi uma escolha influenciada pela literatura, não?
Sim, mas não é exceção. Na minha geração, a gente lia certos livros, e um deles nos influenciou demais, "Olhai os Lírios do Campo", do Érico Veríssimo. É a história de um jovem médico, apaixonado por uma médica, uma história comovente, que fez a cabeça dos jovens da época. Muitos entraram para a faculdade de medicina por causa do livro, com a figura daquele jovem médico na cabeça. O que mais me atraiu na medicina foi a dimensão humana, a possibilidade de mergulhar na natureza humana, de conhecer as pessoas como elas realmente são. Porque quando a pessoa está doente, sobretudo muito doente, ela se revela, as máscaras caem por completo. Ninguém consegue aparentar o que não é quando está numa UTI de um hospital. Para mim, isso foi muito importante. E eu sou de uma geração muito militante do ponto de vista político, de esquerda. Participei de muitos eventos que abalaram o País, principalmente nos anos 60. Em 1961 houve uma tentativa de golpe, houve um movimento de resistência democrática que nasceu aqui em Porto Alegre. Eu estava lá, como também estava na resistência ao golpe de 1964. A idéia era de que a gente vivia num país desigual e eu precisava dar minha colaboração como médico.
Por isso optou pela saúde pública?
Sim. Foi uma decisão da qual eu nunca me arrependi. A idéia de você abordar uma doença na população é muito gratificante. Me lembro que quando resolvi fazer saúde pública, médicos mais velhos me aconselhavam a não fazer isso. Porque é uma área que paga pouco, e onde os recursos são escassos e o componente político é muito forte. Sofri com esses problemas, mas não me arrependi porque estou convencido de que a saúde pública é muito importante para o Brasil. Dei minha contribuição.
Depois, com a abertura política, o sr. abandonou a política, não militou mais?
Não, nunca fui de partido. Meu temperamento não é adequado para essas coisas de intrigas, conchavos, isso sempre me desgostou. Procurava estar presente na luta por determinadas causas, mas não gostava do cotidiano partidário.
Os livros que coincidem com essa época são engajados, mas o fato é que sua obra vai ficando mais doce com o tempo. Poderia dizer, então, ela estava mais contaminada pelo discurso engajado naquela época?
É verdade. Mas você tem de entender que essa é a trajetória da minha geração. Nascemos na queda do nazismo, depois vimos a revolução russa e cubana. Os jovens ficavam muito entusiasmados com isso. Eu estava convencido que a solução era o socialismo, e depois fui me desiludindo. Muitos passaram para o extremo oposto, foram para a direita. Não é o meu caso. Acho que a esquerda pode ter errado, mas os seus objetivos são ainda justificáveis. O que não funcionou foi a prática.
Lendo o livro, dá para perceber o fascínio que o sr. tem pela figura do escritor. Sei que além de escritor, o sr. é estudioso de literatura. Ainda se mantém fascinado pelos mestres?
Esse fascínio envolve muitas coisas que fazem parte do ser humano e são desafiantes. O escritor é um cara que lida com a criatividade. Não é só ele, mas o processo pelo qual nasce uma idéia e esta se transforma numa história é fascinante. Sempre tive essa admiração por escritores e continuo tendo. Há escritores que eu olho não como escritor, mas como se eu fosse um garotinho. Kafka, por exemplo, sempre foi um mestre (aponta uma prateleira só de livros dele na estante). Tem coisas dele que eu conheço de cor.
Acredita que haja uma fonte de inspiração para cada escritor?
Acredito em inspiração, mas não como uma coisa exterior que chega a você. Acho que inspiração é um processo pelo qual você tem acesso, ainda que momentaneamente, àquele compartimento da sua mente que estava oculto ou inconsciente.
O sr. está republicando textos antigos. Costuma guardar originais?
Sim, esses estavam amarelados. Eu reluto em reler as coisas que escrevi. Tenho um livro que nunca mais deixei publicar, que escrevi quando era estudante de medicina. É sobre minhas experiências como médico iniciante. No fim do curso os colegas insistiram para que eu lançasse um livro, que até teve sucesso, porque meus pais obrigaram toda a vizinhança a comprar. Mas, relendo, percebi a precariedade. Dominar a arte de escrever demanda treino. Até os primeiros textos do Machado de Assis são patéticos. Não guardo tudo o que escrevi, mas o que posso. Há uns seis meses, doei meus originais - que não vão mais existir por causa dos computadores - para a PUC, que vai organizar um arquivo.
Diário de Cuiabá (MT) 6/3/2007