Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > As várias camadas de Nélida Piñon

As várias camadas de Nélida Piñon

 

Patrícia Villalba
Enviada especial
RIO

Com sorriso misterioso, Nélida Piñon diz que a criação se sobrepõe a pelo menos sete camadas da civilização. É um conceito que estabeleceu desde criança, quando ouviu a história do arqueólogo Heinrich Schliemann e que acabou por moldar a literatura que ela viria a defender anos depois. Arqueóloga que busca o inefável e caçadora das borboletas que são as palavras, ela revira, apresenta e analisa referências literárias em "Aprendiz de Homero" (Record, 368 págs., R$ 38), livro de ensaios que acaba de chegar às livrarias e que precede o livro de memórias que ela lança em setembro.

"Aprendiz de Homero" diz claramente que você é uma escritora que se preocupa com o processo de criar. Desde quando passou a se interessar pela figura do escritor tanto quanto pela obra dele?

NÉLIDA PIÑON - Acho que à medida que eu escrevia e encontrava dificuldades para exprimir o que pretendia, fui me dando conta de que havia uma artimanha, um processo. Havia um acordo entre o meu gosto e a palavra. Porque a palavra tudo faz para não ser captada, ela quer ir embora, é fugaz. E, ao mesmo tempo, a palavra é desafiante. Ela olha para você e diz: "Como é, você será capaz de me domar"? Ou seja, acho que a luta do escritor é arrancar da palavra toda a sua multiplicidade, tudo o que existe nela. Há um grande embrião, uma seiva dentro de você, mas você tem de domar essa seiva para contar tudo o que é possível ser contado.

E, então, a palavra domada chegaria com mais eficácia ao leitor?

NÉLIDA PIÑON - Vamos dizer que você chega talvez mais próximo ao centro do verbo. O verbo te supera, mas você se acerca da vizinhança do sagrado. A palavra é isso, o equilíbrio entre o profano e o sagrado. Daí você poder atribuir às frases vários significados, e quanto mais significados você atribui às frases, mais clássicas e mais ricas elas são, porque você permite que o leitor seja livre. O que ocorre é que tenho de me empenhar como autora para suspender o descaso, uma certa indiferença, do leitor. É um processo de sedução.

Sim, para fazer alguém atravessar 300 páginas.

NÉLIDA PIÑON - É, sem desistir. Ele tem de ser fisgado. E ele passa a acreditar naquele universo que está sendo narrado. Que, na verdade, é o universo dele, que ele precisava saber que existe. Não é'

Sendo o universo do escritor interessante para atrair, não?

NÉLIDA PIÑON - Sim. Sabe o que é' Uma arqueologia, com várias camadas. Lembro de que, quando menina, li a história do arqueólogo (Heinrich) Schliemann. Ele acreditou em Homero e começou a procurar Tróia. Encurtando a conversa, começou a escavar. Encontra escombros do que seria Tróia, mas não era ela. Aparece uma segunda cidade. E Tróia seria a sétima cidade a aparecer. Então, o processo de criação leva dentro dele pelo menos sete cidades soterradas, toda a geologia humana. Nós somos o quê' Somos pedras que tremem, e a chuva nos modifica.

Homero está na última camada?

NÉLIDA PIÑON - Certamente Homero nos diria: "Aqui é a Tróia que eu descrevo, mas a Tróia que eu inventei deve estar mais no fundo." E para o criador, meu bem, não há a última cidade. A criação é regime instável. Nenhum escritor é capaz de descrever os pormenores, garantir exatamente como foi construído o processo.

Quando saiu em busca da memória, você acabou por se tornar uma escritora que é brasileira, mas não enraizada.

NÉLIDA PIÑON - É uma visão equivocada acreditar que ser universal é ser menos enraizado. Ao contrário, eu sou cada dia mais enraizada, porque tenho outras visões de mundo. E há uma harmonia entre esses mundos e o nosso mundo. Nós somos atlânticos, não podemos nos fechar. Sempre digo: se Machado de Assis existiu, o Brasil é possível. Posso dizer que sou brasileirinha no sentido cósmico, mas não quero meu país brasileirinho. Acha que o meu avô Daniel veio para cá no fim do século 19 por que era um país vagabundo' Não. Ele me deu um grande país e a majestade da Língua Portuguesa.

Centenas de versões, de milhares de páginas

"Aprendiz de Homero" foi um bom pretexto para a reportagem visitar os preciosos arquivos da escritora Nélida Piñon, que ela mantém com capricho num apartamento do mesmo prédio onde mora, no Rio. Apaixonada pelo processo criativo tanto quanto pela literatura em si, Nélida não é escritora de cortar, mas de aumentar. E não se rendeu completamente ao computador - "Imprimo tudo, só confio na revisão feita no papel", explica ela, na frente das 700 pastas com as várias versões de "A República dos Sonhos" (1984). Setecentas versões, de um livro de mais de 700 páginas. Faça a soma, e você terá dimensão do que é o arquivo. "Para mim não tem essa de arquivo de computador. Tudo eu imprimo, sou filha de Gutenberg", anuncia, com certa dramaticidade.

Em certo momento da visita guiada, Nélida tira uma das pastas de "A República dos Sonhos" da prateleira. Depois de tanto tempo sem rever os originais, ela mesma fica surpresa - muitas páginas manuscritas, outras tantas datilografas na "maquininha" que foi companheira por tanto tempo. "Eulália começou a morrer na terça-feira", lê a primeira frase do livro. "Quando descobri essa frase, me dei conta do que seria "A República dos Sonhos".

Há ainda livros, fotografias, homenagens de universidades do mundo todo, relatos de viagens, cartas e até mesmo os e-mails que ela recebe, imprime e acomoda em pastas. Tudo dividido em quatro salas - Machado de Assis, Homero, Cervantes e Clarice Lispector. No corredor, uma foto da escritora criança, olhos faiscantes no colo da mãe, Carmen. "Conto a história dessa foto no livro de memórias que logo vai sair. O Rubem Fonseca olhou o retrato e disse: `Se nós tivéssemos visto essa foto antes, teríamos nos prevenido contra ela.¿", diverte-se ela, ainda menina.

Frases:

- "Há um grande embrião, uma seiva dentro de você, mas você tem de domar essa seiva para contar tudo o que é possível ser contado."

- "A criação é regime instável. Nenhum escritor é capaz de descrever os pormenores, garantir exatamente como foi construído o processo."

- "Eu tenho de me empenhar como autora para suspender o descaso, uma certa indiferença, do leitor. É um grande processo de sedução."

- "A palavra tudo faz para não ser captada, ela quer ir embora, é fugaz. E, ao mesmo tempo, a palavra é desafiante. Ela olha para você e diz: "Como é, você será capaz de me domar'"

- "Nós somos atlânticos, não podemos nos fechar. Eu sempre digo: se Machado de Assis existiu, o Brasil é possível."

- "Posso dizer que sou brasileirinha no sentido cósmico, amoroso, mas não quero meu país brasileirinho."

O Estado de S. Paulo (SP) 30/4/2008

30/04/2008 - Atualizada em 29/04/2008