Bença, mãe! Bença, pai! Quebro aqui o protocolo agradecendo primeiro a presença e a vida de vocês, salientando o quanto foram importantes nessa minha caminhada. Se eu segui adiante foi porque eu nunca tive dúvidas de que sempre teria para onde voltar, caso qualquer coisa desse errado.
Agradecer a presença de meu irmão, Alexandre, de minha irmã, Andressa, minha cunhada Fabiana, meu cunhado Paulo, as sobrinhas Bruna, Carol e Olívia. tia Diva, tio Gilson, tio Neuton, tio Valter, tia Ilma, vocês são alguns dos 37 membros da minha família presentes aqui hoje nesse salão, entre primos e primas, a quem não nomeio, mas tenho certeza de que sabem que, sem vocês, sem este núcleo de amor e apoio que a nossa família sempre cultivou, eu nada seria.
Agradecer demis também minhas primas Clecinara e Marcela que, incansavelmente, colocaram de pé tudo vocês vão vivenciar aqui hoje.
Em nome de Priscila e Micha, que nos guiaram na produção desse momento, agradeço a todas as amizades presentes.,
Em nome do carnavalesco André Rodrigues, que junto com o carnavalesco Antônio Gonzaga traduziram o "Um defeito de cor" para o carnaval, agradeço à Portela pelo carinho e a confecção deste fardão. Todo mundo da Portela: aquele abraço.
Em nome do meu irmão de axé Geraldo Campos, cumprimento e agradeço Pai Décio D´Oxum e irmãos e irmãs da nossa casa. Axé!
Agradeço e cumprimento o excelentíssimo senhor Merval Pereira, presidente da ABL. Agradeço e cumprimento as acadêmicas e os acadêmicos que aqui me receberem com acolhimento, carinho e respeito, a minha mais profunda admiração. Em nome da dona Lúcia e Fabiana, agradeço a todas as funcionárias e funcionários da ABL, pela atenção, o carinho, a prontidão e a seriedade com que fazem esta Casa funcionar.
Em nome de Lívia Vianna, minha editora, agradeço a diretoria e todos os funcionários da editora Record.
Às mestras, agradeço e abraços, em nome de Leda Maria Martins.
Às autoridades, agradeço a honra da presença: Ministra da Igualdade Racial, Aniele Franco,
Agradeço, por fim, à ancestralidade, fonte inesgotável de conforto, fé, paciência, sabedoria e resiliência. Axé!
Cadeira 33
O fundador da Cadeira 33 é Domício da Gama. O jornalista, diplomata, contista e cronista nasceu em Maricá, Rio de Janeiro, em 23 de outubro de 1862, e faleceu em 8 de novembro de 1925. Amanhã, portanto, completaremos 100 anos da sua morte. Ele foi um dos 10 acadêmicos eleitos na sessão no dia 28 de janeiro de 1897, complementando o quadro dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Além de outras ocupações dentro do serviço diplomático brasileiro, foi embaixador do Brasil em Washington de 1911 a 1919, escolhido pelo Barão do Rio Branco para suceder Joaquim Nabuco. Serviu também na Embaixada de Londres em 1920 e 1921. Em 1919, substituiu Rui Barbosa na presidência da Academia Brasileira de Letras. Como colaborador da Gazeta de Notícias, escreveu contos, crônicas e críticas literárias. Foi Domício da Gama quem escolheu o escritor Raul Pompéia como patrono da Cadeira 33.
Raul Pompéia, ainda bastante jovem, foi um grande incentivador da fundação da ABL, e provavelmente seria um dos membros, mas eram anos conturbados. A vida na capital no pós abolição e pós proclamação da república, e as decisões políticas que tomou, o levaram ao completo isolamento e ao suicídio, no Natal de 1895, deixando as obras As Joias da Coroa e o Ateneu.
O segundo ocupante da cadeira 33 foi Fernando Magalhães. Médico, professor e orador, nasceu no Rio de Janeiro em 18 de fevereiro de 1878, onde também faleceu em 10 de janeiro de 1944. Bacharelou-se em Ciências e Letras pelo Colégio Pedro II e doutorou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Foi fundador da Pro Matre, entidade beneficente da qual foi diretor por vários anos. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras em 1929, 1931 e 1932.
Foi também membro da Academia Nacional de Medicina, do Conselho Nacional de Ensino, da Sociedade de Medicina e Cirurgia, do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, da Liga Nacional da Defesa e da Academia de Ciências de Lisboa, da Sociedade Obstetrícia de Paris e outras associações médicas nacionais e estrangeiras.
Publicou seis livros, deixando uma vasta obra médica, sobretudo na área de obstetrícia, e mais de 200 trabalhos esparsos sobre assuntos médicos.
O terceiro a ocupar a cadeira 33, eleito em 18 de maio de 1944, foi Luís Edmundo. Jornalista, poeta, cronista, memorialista, teatrólogo, historiador, orador e notável boêmio. Nasceu no Rio de Janeiro em 26 de junho de 1878 e faleceu em 8 de dezembro de 1961. Aos 20 anos, já fazia parte do grupo simbolista, sendo responsável pela direção da revista Contemporânea, uma das principais publicações de vanguarda do simbolismo brasileiro.
Trabalhou também na imprensa, no jornal Correio da Manhã, e publicou seu primeiro livro de versos, Nimbus, em 1899, aos 21 anos. Ainda jovem, tornou-se um poeta muito popular, e seus sonetos, como Olhos Tristes, eram declamados nos melhores salões de então. Sua queda pela boemia ainda fez com que se tornasse um grande cronista da cidade do Rio de Janeiro.
O quarto ocupante da cadeira 33 foi Afrânio Coutinho. Professor, crítico literário e ensaísta, foi o primeiro ocupante a nascer fora do Rio de Janeiro. É de Salvador, Bahia, onde nasceu em março de 1911, mas faleceu no Rio, em 5 de agosto de 2000. Foi eleito no dia 17 de abril de 1962 e tomou posse no dia 20 de julho de 1962, sendo recebido pelo acadêmico Eduardo Portela.
Afrânio Coutinho se formou em Medicina em 1931, mas não exerceu a profissão, dedicando-se ao ensino de Literatura e História em um curso secundário, sendo também bibliotecário da Faculdade de Medicina e professor da Faculdade de Filosofia da Bahia.Em 1942, mudou-se para os Estados Unidos para exercer o cargo de redator secretário da revista Seleções, em Nova York, onde morou por cinco anos, frequentando cursos da Columbia University e de outras universidades estadunidenses para se aperfeiçoar em crítica e história literária. Voltou ao Brasil em 1947, para morar no Rio de Janeiro, onde foi nomeado catedrático interino do Colégio Pedro II, na cadeira de Literatura. Em 1951, fundou, na Faculdade de Filosofia do Instituto La-Fayette, a cadeira de Teoria e Técnica Literária, a primeira do gênero no Brasil.
Em 1958, fez concurso para livre docente da Cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde conquistou o título de doutor em Letras Clássicas e Vernáculas. Em 1963, após a aposentadoria de Alceu Amoroso Lima, foi nomeado professor e catedrático interino de literatura brasileira, sendo efetivado em 1965. Em 1968, permanecendo até 1980, foi nomeado diretor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que ajudou a criar. É de sua iniciativa também a criação da Biblioteca da Faculdade de Letras e a elaboração da Enciclopédia de Literatura Brasileira, publicada em 1990.
O quinto ocupante da cadeira 33, o professor Evanildo Cavalcante Bechara, foi eleito em 11 de dezembro de 2000 e recebido em 25 de maio de 2001 pelo acadêmico Sérgio Corrêa. Nasceu em Recife, em 26 de fevereiro de 1928, e faleceu no Rio de Janeiro, em 22 de maio de 2025, cidade para onde se mudou aos 11 ou 12 anos, após ficar órfão de pai. Veio morar com um tio-avô, para dar continuidade à sua educação, e desde muito cedo demonstrou forte vocação para o magistério.
Formou-se em Letras, modalidade Neolatinas, na Faculdade do Instituto La-Fayette, hoje UERJ, e para isso muito contribuiu um encontro que teve, aos 15 anos, com o professor Manuel Said Ali, grande estudioso da língua portuguesa, na época com pouco mais de 80 anos, que viria a se tornar seu mentor. Aos 17 anos, o professor Evanildo escreveu seu primeiro ensaio, Fenômenos de Intonação, publicado em 1948.
Em 1954, aos 26 anos, assumiu a cátedra de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II, e reuniu os artigos publicados em jornais e revistas, entre os 18 e 25 anos de idade, no livro Primeiros Ensaios da Língua Portuguesa. Seria o primeiro de muitos.
Depois de concluir o curso universitário, fez vários concursos públicos, e aperfeiçoou-se em Filologia Românica em Madri nos anos de 1961 e 1962. Em 1964, tornou-se Doutor em Letras pela UEG, atual UERJ, onde foi professor de Filologia Românica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de 1962 a 1992. Foi também professor de língua portuguesa do Instituto de Letras da UFF, de 1976 a 1994.
Provando sua total vocação para ensinar, Evanildo Bechara também foi professor titular de Língua Portuguesa, Linguística e Filologia Românica da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques, de 1968 a 1988; professor de Língua Portuguesa e Filologia Românica em instituições de ensino nacionais e estrangeiras ( Alemanha, Holanda e Portugal). Professor Emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994) e da Universidade Federal Fluminense (1998). Entre 1971 e 1972, exerceu o cargo de professor titular visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha, e de 1987 a 1989, na Universidade de Coimbra, em Portugal.
Entre 1954 e 1985, defendeu várias teses acadêmicas e escreveu e publicou mais de duas dezenas de livros, sendo um dos mais conhecidos de todos que estudaram gramática na escola, a Moderna Gramática Portuguesa.
O professor Evanildo Bechara ainda foi diretor da equipe de estudantes de Letras da PUC-RJ que, em 1972, levantou o corpus lexical do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, sob direção de Antônio Weiss. Orientou várias dissertações de mestrado e teses de doutorado, assim como fez parte de inúmeras bancas examinadoras, em concursos públicos e em várias instituições de ensino.
Entre 1974 e 1980, foi diretor do Instituto de Filosofia e Letras da UERJ; de 1974 a 1980 e de 1984 a 1988 . Entre 1965 e 1975, foi Secretário-Geral do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro de 1965 a 1975. Entre 1976 e 1977, foi Diretor do Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Entre 1978 e 1984, Membro do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro, de 78 a 84. Entre 1981 e 1984, Chefe do Departamento de Filosofia e Linguística do Instituto de Filosofia e Letras da UERJ, de 81 a 94. Entre 1968 e 1988, Chefe do Departamento de Letras da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques. Foi diretor da revista Litera, de 1971 a 1976, da revista Confluência, de 1990 a 2005. Tudo isso enquanto também foi Membro Titular da Academia Brasileira de Filologia, da Sociedade Brasileira de Romanistas, do Círculo Linguístico do Rio de Janeiro, da Sociedade de Linguística Romana, do PEN Clube do Brasil, Sócio Correspondente das Academias de Ciências de Lisboa e da Academia Internacional de Cultura Portuguesa. Foi figura central e principal representante brasileiro na elaboração do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Integrou o conselho editorial de diversos volumes do dicionário Caldas Aulete. Em 2000 é Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
Na Academia Brasileira de Letras, foi Diretor Tesoureiro em 2000 e 2003, e Secretário-Geral de 2004 e 2005.
Criou a coleção Antônio de Moraes Silva para publicação de estudos de língua portuguesa e foi membro da comissão de lexicologia e lexicografia e da seleção da biblioteca Rodolfo Garcia.
Segundo o site da ABL, publicou 32 livros, 26 capítulos em livros de coletânea, 110 artigos para coleção na Ponta da Língua, 47 artigos em revistas várias, 5 verbetes de dicionários, 5 teses em concursos, 1 tradução, 60 resenhas, 29 prefácios e várias introduções e apresentações.
E durante tudo isso, vivendo, sendo doce, educado, querido, generoso, como me dizem todos os que o conheceram no longo convívio aqui na ABL. Em seu discurso de posse, o Professor Bechara diz: “as línguas não são apenas expressão do pensamento intelectivo, mas também de emoção e sentimento”. Sobre ele, Sérgio Corrêa da Costa diz em seu discurso de recepção: “Navegando, necessariamente, entre tradicionalismo e mudança, soubestes encontrar a divisória justa na coexistência sensata do código escrito, que cumpre preservar, e da prática oral, igualmente digna de acato e consideração.”
Para mim é uma honra, um privilégio e uma responsabilidade enorme sucedê-lo na Cadeira 33, e espero ter tempo de merecê-la, como a história da Cadeira pode indicar. Sérgio Corrêa da Costa cita que a Cadeira 33 oferece uma espécie de promessa de longevidade, uma vez que Domício nos deixou aos 63 anos, Magalhães aos 66, Luís Edmundo aos 83, Afrânio Coutinho aos 89”, e eu completo: Evanildo Bechara, aos 97. Como podemos ver, há uma progressão, rumo à imortalidade.
A Academia
No final do século XIX, circulavam na capital da República algumas revistas literárias, como A Semana e Panelinha, em torno das quais se reuniam aqueles considerados a elite intelectual brasileira.
Foi durante um chá, na redação da Revista Brasileira, no dia 5 de novembro de 1896, que um jovem escritor chamado Lúcio de Mendonça lança a ideia de fundação no Brasil de uma academia de letras nos moldes da academia francesa. A Revista Brasileira é a mais antiga em circulação no Brasil, sendo hoje, brilhantemente editada pela acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira. Aquela elite intelectual também se reuniam em alguns salões particulares, sendo um deles, bastante famoso à época, o da Casa Verde. Assim João do Rio chamava a residência da escritora Julia Lopes de Almeida, um amplo casarão, cercado de verde, nos altos do bairro de Santa Teresa. Tive o privilégio e a tristeza de visitar o local na semana passada, pois ele se encontra em péssimo estado de conservação. Nas reuniões e nos saraus que ali aconteciam, estavam presentes muitos dos que seriam os membros fundadores da Academia Brasileira de Letras, cujos parâmetros também foram ali discutidos.
Júlia Lopes de Almeida foi escritora e jornalista por mais de 40 anos, durante os quais defendeu a educação feminina, a instalação de creches, o divórcio, a abolição da escravatura, e era a escritora mais publicada da Primeira República. Foi excluída do grupo fundador apenas por ser mulher. Em seu lugar, na Cadeira 3, assumiu o marido, o poeta português Filinto de Almeida, pejorativamente chamado, à boca pequena, de Acadêmico Consorte. O próprio Filinto admite, em entrevista a João do Rio, a injustiça que foi cometida contra a esposa.
João do Rio: “Há muita gente que considera Dona Júlia o primeiro romancista brasileiro.”
Filinto de Almeida: “Pois não é? Nunca disse isso a ninguém, mas há muito que o penso. Não era eu quem deveria estar na academia, era ela.”
A misoginia que injustiçou Júlia Lopes de Almeida, como parte do projeto androcêntrico de fundação da Academia Brasileira de Letras, continuou agindo por mais de oito décadas. A não admissão de mulheres foi, inicialmente, um acordo entre cavalheiros, já que não havia nada de impeditivo no estatuto. Quando a academia foi surpreendida, em 1930, pela candidatura da escritora Amélia Beviláqua, esposa do jurista e também acadêmico Clóvis Beviláqua, foi necessário o que foi chamado de “firula linguística” para justificar o indeferimento de sua candidatura. O Art. 30 do Regimento Interno da agremiação postula que “os membros efetivos da Academia serão eleitos dentre os brasileiros, nas condições do Art. 2º dos Estatutos, que se apresentarem candidatos, mediante carta dirigida ao Presidente e entregue na Secretaria, que da mesma passará recibo”. A candidatura de Amélia foi indeferida, baseada na interpretação de que o vocábulo “brasileiros” aludiria somente aos indivíduos do século masculino. Clóvis Bevilácqua, indignado com o movimento feito por seus pares, publicou artigos na imprensa condenando o acontecido, dizendo ser um “preceito elementar de hermenêutica”, e deixou de frequentar a Academia.
Em 1951, a Academia finalmente faz uma modificação no artigo para incorporar o aposto restritivo “do sexo masculino”, ficando assim: “os membros efetivos serão eleitos nas condições doArt. 2º dos Estatutos, dentre os brasileiros do sexo masculino que tenham publicado, em qualquer gênero de literatura, obra de reconhecido mérito, ou, fora desses gêneros, livros de valor literário.”
Parece que estavam adivinhando que precisariam de argumentos mais fortes quando em 1970, a escritora Dinah Silveira de Queiroz apresenta sua candidatura. Dinah era não somente uma das mais conhecidas e aclamadas do país, como também a primeira escritora a receber, pelo conjunto da obra, o prêmio Machado de Assis, concebido pela própria ABL, em 1954. Também pela ABL já havia recebido, em 1950, o prêmio Afonso Arinos. O eterno presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Athayde não aceitou sua candidatura, baseando-se na oficialidade que negava às mulheres, apenas por serem mulheres, o ingresso nesta agremiação. O ingresso de mulheres na Academia voltou a ser oficialmente permitido para a eleição de Rachel de Queiroz, em 1977. Com certeza, a comoção causada pela discussão em torno da negação da candidatura de Dinah Silveira de Queiroz contribuiu para isso.
Da mesma maneira que acredito que a discussão em torno da candidatura da escritora Conceição Evaristo, em 2018, contribuiu para eu estar aqui hoje. Independente do resultado, foi uma candidatura que fez com que a ABL olhasse para si e, diante da sociedade, finalmente percebesse o quão homogênea ainda era, e o quanto falhava em representar, dentro de seus quadros, todas as línguas faladas pelo nosso povo. Para entender a necessidade disso, apelo a uma frase do Professor Evanildo Bechara, segundo o qual “precisamos ser poliglotas na própria língua”.Ou seja, no passado da Academia Brasileira de Letras há um projeto deliberado de exclusão de mulheres, assim como uma estrutura que, sendo baseado também nas relações sociais de seus membros, extra-oficialmente também exclui as minorias já excluídas pela sociedade, por falta de contato e de conhecimento nas relações, e que precisa ser combatido. Depois do apagamento de Júlia Lopes de Almeida, das candidaturas negadas de Amélia Beviláqua e Dinah Silveira de Queiros, viemos Rachel de Queiroz, Lígia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Zélia Gattai, Ana Maria Machado, Cleonice Berardinelli, Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro, Lilia Schwarcz, Miriam Leitão e eu. Depois da candidatura de Conceição Evaristo viemos Gilberto Gil, Ailton Krenak e eu. Ainda somos poucos, pra tanto trabalho de reconstrução de um imaginário em relação ao que representamos.
Durante muito tempo, o acadêmico Domício Proença foi o único negro na Academia Brasileira de Letras. E durante muito mais tempo ainda, a negritude de Machado de Assis lhe foi negada. Sobre Machado, em uma carta para o amigo José Veríssimo, que havia chamado Machado de mulato, após sua morte, disse o abolicionista Joaquim Nabuco: “Eu não o teria chamado mulato. E penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese. Rogo que tire isso quando reduzir o artigo a páginas permanentes. A palavra não é literária e é pejorativa. O Machado para mim era branco, e creio que por tal se tomava: quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego”.
Ou seja, para ser portador da intelectualidade que o caracterizava, Machado de Assis teria, aos olhos de Joaquim Nabuco, que abrir mão de sua negritude, teria que abrir mão do seu defeito de cor. E cá estou eu, hoje, 128 anos depois de sua fundação, como a primeira escritora negra eleita para a Academia de Letras, falando pretoguês e escrevendo a partir de noções de oralitura e escrevivência. E assumo para mim, como uma das missões, promover a diversidade nessa casa e fazer avançar as coisas nas quais nela eu sempre critiquei, como a falta de diversidade na composição de seus membros, uma abertura maior para o público, verdadeiro dono da língua que aqui cultivamos, e um maior empenho na divulgação e na promoção da literatura brasileira. E isso, podendo ser quem eu sou.
Como diz Neusa Santos, “saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades”. Venho, como diz a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, trabalhar para que não sejamos empobrecidos com a contação de uma única história, do jeito das que são contadas pelas composições homogêneas. E para terminar, venho, a partir do texto de Dione Brand que lerei em seguida, abrir portas. Outros tipos de portas.
A porta do não retorno, real e metafórica, como alguns lugares o são, mítica para aqueles de nós espalhados pelas Américas hoje. Ter o próprio conhecimento alojado em uma metáfora é um enredo luxuoso. É como habitar uma alegoria, ser um tipo de ficção. Viver na diáspora negra é, penso eu, viver como um ser fictício, uma criação dos impérios, mas também uma auto-criação. É ser alguém vivendo dentro e fora de si mesmo. É entender-se como signo estabelecido por alguém e ainda assim ser capaz de escapar dele, a não ser em momentos radiantes de simplicidade transformados em arte. Ser uma ficção à procura de sua metáfora mais ressonante é ainda mais intrigante. Então, estou explorando mapas de todos os tipos da maneira como algumas ficção fazem, discursivamente, elipticamente, tentando localizar os eus transferenciados. (...) Eu não visitei a porta do não retorno, mas confiando em depoimentos aleatórios de histórias de memória oral dos descendentes daqueles que passaram através delas vindo a mim, estou desenhando um mapa da região, prestando atenção ao rosto, ao desconhecido, aos atos não intencionais de retorno, às marcas deixadas na soleira. Cada ato reminiscente é importante, até mesmo olhares de consternação e desconforto. Cada fio de sonho é uma evidência. A porta é um local real, imaginário, e imaginado. Como são as linhas e os continentes negros. É um lugar que existe e existiu. A porta no qual africanos foram capturados e embarcados em navios que seguiram para o novo mundo. Uma porta que muitos de nós gostaríamos que não tivesse existido. É a porta que torna a palavra porta impossível e perigosa. A porta odiosa e desagradável. Há nesse estado mental comum, de não se estar nem aqui nem lá, nem dentro nem fora. como se a porta fosse também sua própria imagem, pegos entre as duas, nós vivemos na diáspora, no mar intermediário. Ao imaginar nossos ancestrais colocando os pés para fora desses portais tem-se a impressão de vê-los caminhando para o nada, sente-se um espaço surreal, inexplicável. Imagina-se pessoas tão chocadas com as próprias circunstâncias, tão quebrantadas que recusam a realidade. Nossa herança é viver nesse espaço inexplicável. Esse espaço que se mede pelos passos de nossos ancestrais através da porta em direção ao navio. Ficamos aprisionados no pouco espaço do meio, sob a moldura da porta, único espaço da existência verdadeira." Muito obrigada.