Boa noite, sr. Merval Pereira presidente da ABL. Boa noite acadêmicas e acadêmicos, meus amigos queridos.
Boa noite, autoridades aqui presentes.
Boa noite, toda parentela estendida de Ana Maria Gonçalves: sua ancestralidade inteira está nessa noite, aqui, conosco.
Boa noite, às pessoas que compareceram a esta cerimônia memorável: no sentido primeiro da palavra – de ficar guardada na memória.
Boa noite, Ana Maria Gonçalves, que me deu a imensa alegria do convite para recebê-la na ABL. Depois de ler a tua mensagem, me lembrei da frase do acadêmico Gilberto Gil: “Todo mundo tem seu jeito singular, de ser feliz, de viver e de se enxergar”, e é assim que me sinto nessa noite histórica.
Histórica, porque é a primeira vez que temos seis acadêmicas reunidas: aliás, somos apenas 13, desde a fundação da ABL. Mas, como disse a Ministra Cármen Lúcia, em julgamento também histórico para a nossa democracia, fomos caladas durante dois mil anos e hoje ainda estamos aqui.
A noite é histórica, sobretudo, porque é a primeira vez que uma mulher negra, com a importância literária, ativista e pessoal de Ana Maria Gonçalves entra na ABL.
Essa cerimônia é também histórica, porque Ana é autora de Um defeito de cor, romance que virou símbolo de um Brasil que clama por inclusão e pluralidade. Nas suas quase 1000 páginas, o livro trata da saga e da cicatriz da escravidão no Brasil, dessa Kalunga grande, e, ao fazê-lo mostra como a luta pela liberdade realizou-se e se realiza a partir da resistência política, religiosa, cultural, intelectual e literária negra – e essa sessão não deixa de ser uma prova eloquente disso.
Na guarda da edição comemorativa deste livro, Ana incluiu o trabalho “Parede da Memória” de Rosana Paulino. Composto por 1500 patuás, ele reúne 11 fotos de família da artista, que criam uma retórica poética e visual; uma denúncia à invisibilidade que a memória oficial destina às pessoas negras. Pois bem. Nessa cerimônia está reunida a “parede da memória” de Ana Maria Gonçalves, sua família, mas também amigos e admiradores, dentre os quais me incluo.
Aqui está Ivan Gonçalves, pai de Ana, o qual, segundo ela me contou, representa o lado mais amoroso da família. A escritora lembra dele como um canceriano apaixonado, que trata seus próximos na base do “eu te amo” e do “vem cá”.
Ana conta que aprendeu a gostar de ouvir histórias com suas duas avós – a materna (Ana) e a paterna (Maria) – e com Helia Iza da Silva Gonçalves, sua mãe; que sempre cuidou da família. “Cuidar”, esse verbo tão vinculado à experiência social das mulheres.
A filha recorda o silêncio reinante na casa quando o pai voltava do trabalho, depois de seus turnos na empresa. Retido na memória afetiva ficou também o som da máquina de costura de d. Helia, com o qual, a própria Ana se acostumou a escrever.
A mãe, que varava noites na sua confecção, destinava parte do lucro para a compra de livros. Segundo a filha, ela lia tudo o que lhe caísse nas mãos. Nas cidades pequenas em que a família viveu, não havia livrarias ou bibliotecas. Assim, era motivo de festa a visita mensal do vendedor do “Círculo de livros”. Quando chegava o dia, d. Helia comprava logo quatro ou cinco títulos, e os lia (como ainda os lê) ao mesmo tempo. O amor à leitura vem da própria casa.
A família materna é muito ligada à música. Já Ana me disse que não canta, não toca qualquer instrumento e segredou que dança bem mal (mas é exímia no crochê).
Helia e Ivan estão juntos há 57 anos, e, segundo Ana Maria, andam cada vez mais apaixonados. Não por acaso, Ao lado e à margem do que sentes por mim (o primeiro romance da escritora) e Um defeito de cor são dedicados aos dois.
Ana é a mais velha de três filhos. O irmão Alexandre formou-se engenheiro em Alfenas e hoje trabalha em Botucatu. A irmã Andressa estudou turismo, vive em BH e é assistente de Ana desde 2017. Em tempo: a escritora é tia orgulhosa de Grace, Bruna, Carol e Olívia e de um sobrinho-neto; o Samuel
Os filhos de Helia e Ivan são exemplos dessa primeira geração de estudantes negros que chegou à Universidade por conta do esforço da família e, por vezes, de toda comunidade. Como diz o provérbio africano que abre o capítulo 8 de Um defeito de cor: “quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vem”.
Ana nasceu e viveu a primeira infância na pequena Ibiá. Por lá, a menina subia nas árvores e aproveitava o quintal da avó onde convivia com patos, porcos e muita jabuticaba. A prática da leitura ficava reservada para as noites. Quando Ana tinha cerca de 10 anos, sr. Ivan, que trabalhava na Nestlé, foi transferido para Porto Ferreiro, no interior paulista. A casa era maior, o quintal também, e Ana guarda o cheiro de leite Ninho impregnado na cidade. Por lá cresceu, aprendeu inglês e virou professora do idioma.
Na hora do vestibular, escolheu o curso de publicidade. Entrou na Faap, e lá foi ela de mudança para a capital paulista, onde a rotina, dura, implicava estudar e trabalhar.
Em 1994, fundou com uma amiga a agência “Mercado de Ideias”. Ana era redatora e fazia contato com os clientes: usava terninho de executiva e salto agulha. Ajuizou rápido que esse não era o seu lugar, mas lhe fazia falta uma outra opção.
Contudo, como a vida é feita (também) de acasos, em 2001 recebeu o convite da amiga e cineasta Fernanda Elmôr para trabalhar no roteiro de um documentário curta. Conexão Caribe contava a história de um bar paulistano onde imigrantes dançavam ao som da salsa. Ana resolveu estudar a história de Cuba e, enquanto pesquisava as prateleiras da livraria Fnac, deparou-se com o livro Bahia de todos os Santos, de Jorge Amado, cujo prefácio começava assim: “quando a viola gemer nas mãos do seresteiro ... não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para a festa cotidiana”.
Achou que o recado tinha endereço certo: ela mesma. Comprou um exemplar e tomou conhecimento da Revolta dos Malês, de janeiro de 1835. Ela, que nunca estivera em Salvador, foi fisgada pelo grande levante muçulmano. Passou a estudá-lo como se fosse quebra-cabeças incompleto. Em 2002, tirou férias e voou para a capital dos baianos: percorreu ruas, conheceu locais históricos e tomou balsa para Itaparica.
Decidida, voltou para São Paulo, desmanchou a sociedade na agência, deu fim a um casamento frágil, vendeu seu apartamento e juntou recursos. Em março daquele ano já vivia em Itaparica, e estava decidida a escrever um romance sobre a Revolta.
(Um parêntese: Ana não tem e não gosta de rede social. Não frequenta Instagram, X ou Tik Tok. Me contou que chegou a entrar no Facebook, mas abandonou. Tampouco tem WhatsApp ou Messenger. Até possui celular, mas não é muito chegada nele. Instalada no apartamento que comprou em outubro de 2024 no bairro de Copacabana (com telefone fixo), Ana usa mesmo é o e-mail, mas nunca responde rápido: ela é decididamente (e como se define) “uma ermitã digital”.
Mas no passado, ela chegou a criar (pasmem) dois blogs: o Udigrudi que nasceu em 1998 com notícias, fofocas e textos da própria Ana e o Entrelivros (que durou de novembro de 2002 a janeiro de 2003). Nele divulgou seu primeiro livro: Ao lado e à margem do que sentes por mim.
Essa é uma obra sensível, feminina e delicada. Embora não tenhamos certeza do que é ficcional ou não, logo reconhecemos a escritora: a obra narra a história de uma mulher chamada Ana, que deixa São Paulo para viver numa pequena ilha na Bahia. A protagonista tinha então 30 anos, dera aulas de inglês, trabalhara numa agência e seus pais moravam em Ibiá.
O romance de capa artesanal e com uma margarida personalizada em alto relevo, foi bancado pela própria escritora. Ele está para lá de esgotado, mas a autora hesita em republicá-lo: me disse que teria que trabalhar muito nele. Eu virei fã deste livro delicado que já é quase um cult. Sei que um grande amigo de Ana, Luiz Gravatá, também é. Tanto que foi ele quem levou o romance para Millôr Fernandes, que só não gostou do título; mas passou a acompanhar de perto o novo original da moça.
O Udigrudi durou até 2003. Bem-humorada, Ana me confessou que se 30 pessoas visitavam o blog já era motivo para estourar champagne. De toda forma, hoje ela considera que o apoio dos seguidores foi importante para que encarasse seu alentado novo romance.
Foi em Itaparica que Ana concebeu a ideia de uma protagonista do quilate de Kehinde. A princípio, ela seria totalmente inspirada em Luisa Mahin. Com o tempo, resolveu fazer uma personagem mais coletiva que acumularia as histórias de várias mulheres negras que viveram naquele contexto perverso da escravidão.
Em 2019 fora sancionada a Lei 13.816 que fez com que Luisa Mahin fosse incluída no Livro dos Heróis da Pátria. Infelizmente, sabemos pouco sobre esta mulher africana, que viveu em cidades da Bahia e depois no Rio. Aliás, foi seu filho Luiz Gama quem anotou em duas cartas e em num poema o nome da mãe. Ela “tinha pressa infinita como o dobrar do sineiro”, escreveu ele.
As historiadoras Wlamyra Albuquerque e Lisa Castilo confirmaram, agora em 2025, que Mahin foi de fato a mãe de Gama; já Ana, que nunca duvidou das palavras do filho de Kehinde, embarcou na fabulação crítica. Afinal, é quando o arquivo colonial silencia que é preciso investir em narrativas ficcionais, cheias das suas verdades.
É fato, também, que na Bahia, Luiza/ Kehinde teria convivido com a forte presença africana, destacadamente da África Ocidental, com povos originários de um vasto litoral, que ia do rio Senegal (atual Senegal) até o Cabo Lopes, próximo à linha do Equador. Aliás, quase 75% dos africanos ocidentais que chegaram ao Brasil eram procedentes da Costa da Mina. E dentre eles predominavam os iorubas (chamados de nagôs), os ewes (denominados jejês) e os haussás.
Tanto que, dos 304 africanos presos como suspeitos durante a grande rebelião, 200 eram nagôs. E dentre eles estaria Mahin, Kehinde, protagonista de Ana, e que trazia consigo as muitas quitandeiras, amas, negras minas, comerciantes que circulavam no Oitocentos brasileiro.
Na parede da casa de Itaparica, Ana dispôs 100 folhas de papel sulfite e as datou cronologicamente: 1801 a 1900. As folhas subdividiam-se em três blocos: “Luiza Mahin, demais personagens, o Brasil e o resto do mundo”. Infelizmente, Ana não guardou nada.
Nessa época, mergulhou na leitura dos 52 livros que hoje constam da bibliografia ao final da obra. Lá estão nomes como Alberto da Costa e Silva, Katia Queirós, Manuela Carneiro da Cunha, Antonio Olinto, e o incontornável livro de João José Reis. Ana também leu teses e dissertações, pesquisou documentos, mapas, testamentos, anúncios de fuga e venda. Fez por fim infindáveis listas com nomes jejes, ioruba, bantos, fons, para melhor batizar seus personagens.
Passados sete meses em Itaparica, mudou-se para Salvador: - “foi uma revolução, diz ela, um verdadeiro letramento racial”. Ana me explicou que se percebeu negra em São Paulo. Mas Salvador e a pesquisa para Um defeito de cor foram divisores de águas: “investigar a diáspora africana me fez entender com mais profundidade meus ancestrais e me afeiçoar a eles”, comentou ela.
Para melhor adentrar o universo das religiões afro-brasileiras, entrevistou sacerdotes que cultuavam orixás ou voduns. Conheceu mãe Lindaura, da nação ketu-angola, com quem jogou búzios e soube que era filha de Oxum. (Kehinde é também filha de Oxum). Ana é adepta do candomblé e no seu terreiro, ela é uma ekedi: cuida e zela pela casa, pelos orixás e pelos cultos. Assim, por mais que Um defeito de cor não seja autobiográfico, o livro não se separa do profundo processo pessoal pelo qual Ana passou ao escrevê-lo.
Achava que o terminaria rápido; demorou 5 anos. Tanto que na hora de redigir o livro resolveu morar na casa dos pais, onde trabalhava madrugada adentro. Antes de pegar no sono, lá pelas 6 da manhã, imprimia o trabalho da noite e dispunha as folhas na frente do seu quarto. Já d. Helia acordava naquela hora, recolhia tudo, lia o material e o passava para Andressa. Parecia seriado. Mãe e irmã sempre davam sugestões: às vezes acatadas, às vezes não. Por exemplo, quando morre Banjokô (o primeiro filho de Kehinde) ambas discordaram da decisão da escritora e pediram reconsideração. Ana não topou.
A escritora deu seu livro por terminado no começo de 2003. Imprimiu-o e levou para Millôr. Mas o mentor desaprovou o resultado: na opinião dele, havia muito beletrismo e a saga podia ser mais direta. “Facilite a vida dos leitores” disse ele. Sugeriu ainda que seguisse ordem cronológica e desse um respiro dentro do texto.
A autora confessa ter ficado com raiva, mas trabalhou por mais dois anos. Em 2005, achou que tinha chegada a hora do ponto final. Mais uma vez, não guardou qualquer original anterior. (Ana é o terror dos historiadores). Millor nem leu a nova versão: ligou direto para a editora da Record. Em maio de 2006, saía a primeira tiragem do livro, com orelha do mestre – que a princípio recusou o pedido, explicando que tinha muitos desafetos, e que eles não ajudariam na divulgação. Acabou escrevendo assim: "Em suas 952 páginas 'Um Defeito de Cor' não tem hausto, parada para respirar". "A vida, não sei se vocês sabem, não tem happy end".
A primeira edição de 3 mil cópias esgotou ligeiro. A obra nasceu clássica e virou um best e longseller: são mais de 200 mil exemplares vendidos até hoje.
Em 2007, Ana foi convidada pela universidade de Tulane, em Nova Orleans, como escritora residente. Fez um giro no país: conheceu Stanford, Texas, Michigan, Kentucky, Iowa, sempre falando do livro. Diz ter consolidado sua negritude junto com o movimento norte-americano.
Em 2014, voltou para São Paulo. Mas chegou mudada. Sem salto agulha, encampava agora a luta contra o racismo. Esse que é tema de fundo de sua literatura e de seu ativismo. Por sua vez, o livro criou caminho próprio, virou símbolo e projeção.
Mas o que faz com que a obra fique em pé é a qualidade da escrita, seu estilo sincero, a narrativa direta e a trama complexa que se esconde numa pretensa simplicidade. Como já sabemos, o livro conta a trajetória de Kehinde, uma mulher africana, que, sequestrada de seu continente, tornou-se escravizada no Brasil, participou de várias rebeliões, viveu altos e baixos, e voltou para a África: tudo em quase um século.
Na obra, as fronteiras entre história e ficção são porosas. Vemos desfilar eventos como a independência do Brasil, a volta de Pedro I a Portugal, os conflitos federalistas na Bahia, o Golpe da maioridade de Pedro II – evento que mantém o título de golpe e ninguém parece ligar –, a Guerra do Paraguai, a Lei Áurea, a Proclamação da República. Até a loja de Desmarais que no XVIII vendia perfumaria e artigos de toucador surge na página 667. É fácil reconhecer o dr Joaquim, um estudante de medicina que andava ultimando seu romance e pediu para a protagonista sugerir um título: ele é Joaquim Manuel de Macedo, autor de A Moreninha.
Dentre seus mais de 500 personagens (cerca de 350 são mulheres), muitos são hoje reconhecíveis nos compêndios de história e romances brasileiros. Lá está Anacleto, um negro de pele clara e sobrenome inglês (numa clara citação a Viva o povo brasileiro de João Ubaldo). Na obra de Ana, ele é o melhor freguês dos cookies da protagonista.
O segundo filho de Kehinde é Omotunde; Luiz Gama para o pai. Ele nasceu livre em 21 de junho de 1830, mas, aos 10 anos foi vendido como escravizado, para amortizar a dívida contraída por seu pai, e na ausência da mãe.
Não se sabe muito sobre a infância de Gama. Na história oficial, o menino chega ao Rio em 1840, onde trabalha na casa de um fabricante de velas e negociador de pessoas escravizadas. Foi depois revendido para um alferes e mandado para Santos. De lá seguiu a pé até Campinas, passou por Jundiaí, e finalmente alcançou São Paulo, onde trabalhou como doméstico. Ainda pequeno, Gama conviveu com uma comunidade mulçumana que se encontrava para ler o Alcorão e escrever suas preces (suras). Assim, penso eu, quando aos 17 anos tem contato com a escrita ocidental já devia estar alfabetizado.
Ainda segundo a história dos historiadores, o rapaz ingressa na Força Pública em 1848, e passa a exercer seus dotes como escritor – virou copista de escrivão e de delegado. Ao deixar a Guarda Municipal era um homem negro livre; um letrado nomeado amanuense. Em 1869 já atuava como advogado provisionado nos tribunais de São Paulo, e com agenda ampla: além do final da escravidão, defendia a descentralização da política imperial, o ensino livre, a abolição da guarda nacional, eleições diretas, senado temporário e eletivo, e a extinção do poder moderador. Uma de suas especialidades era explorar as frestas da Lei de 7 de novembro de 1831, que declarava “africano livre” todo aquele desembarcado ilegalmente a partir daquela data. E com a promulgação da Lei de 28 de setembro de 1871 (a do Ventre Livre), Gama ampliou sua atuação. Morreu em 1882, com 52 anos, e sem ver a libertação de seu povo.
Mas essa é a história que lemos nos arquivos e nos textos do advogado negro. Já no romance de Ana, Luisa Mahim/ Kehinde, perdeu seu filho e nunca parou de procurá-lo. Também não conheceu o sucesso que ele teve em vida. Aliás, primeiro soubemos dela, por causa do poema de Gama chamado “Minha mãe” (constante do livro Primeiras trovas burlescas de Getulino, de 1859) e na correspondência de 25 de julho de 1880.
Assim, na história de Gama ele é que procura pela mãe. Na de Kehinde é ela que busca o filho. Pelo menos conhece personagens incríveis, como Zeferina, que liderava o Quilombo do Urubu, um núcleo de resistência negra nas cercanias de Salvador; Rufino, que chegou em Salvador no contexto das rebeliões negras; o africano Horácio Sá Pacheco, conhecido pelo nome de Alufá e que virou um afamado feiticeiro no Rio; ou o traficante Chacha. História e Ficção estão sempre repletas de silêncios, ainda mais em um país que sustentou a escravidão mercantil por quase 4 séculos, e foi o último a aboli-la.
Todo grande romance guarda seus mistérios. Conforme escreveu no prefácio do livro, Ana de fato foi para Itaparica e hospedou-se na casa de dona Clara; já a “sorte” de encontrar um manuscrito sobre a Revolta Malê é pura ficção. Mas esse é o fermento desse grande épico nacional, organizado sob a forma de uma carta testamento, a qual foi, por sua vez, soprada no ouvidos da autora por Kehinde.
Nos seus 10 capítulos, Um defeito de cor é escrito basicamente em primeira pessoa com a literata lançando mão da linguagem indireta apenas quando quer incluir uma conversa. E assim segue a saga de Kehinde, que, tendo nascido em 1810 no poderoso Reino do Daomé, atual República do Benim, faz parte do povo jeje-maí.
“Aprendi muito com Alberto da Costa e Silva”, me disse Ana, referindo-se ao grande africanista. Numa nota pessoal, foi o Acadêmico que me presenteou com um exemplar do livro. “Em que parte da trama está, minha filha?” perguntava ele de tempos em tempos. Essa foi minha primeira leitura (acompanhada) da obra; a última (a terceira) fiz agora, nesse exemplar especial que Ana me ofertou. MAPA
Kehinde falava dois idiomas eve-fon e iorubá e morava na cidade de Savalu. Vivia com a mãe, a avó, o irmão mais velho (Kokumo), e a irmã gêmea (Taiwo) – cujo nome indica que foi ela a primeira a entrar nesse mundo, e só depois avisou à outra que era a hora dela também nascer.
Ibêjis é o termo para gêmeos na tradição iorubá. Em geral eles representam riqueza e sorte. Mas na vida de Kehinde dá-se o oposto: depois de ver a mãe e o irmão serem assassinados, foi vendida junto com sua avó e irmã, e chegou só em terras brasileiras.
O fazendeiro que a adquiriu impôs-lhe o sobrenome dele, e ela mentiu dizendo chamar-se Luísa. Virou Luísa Gama para os “outros”, não para os “seus”, pois nunca aceitou ser batizada. Foi então levada para Itaparica enquanto e fez companhia para a sinhazinha de nome significativo: Maria Clara. Junto com ela aprendeu português e se alfabetizou. Contudo, com 12 anos já chamava atenção do proprietário: do estupro nasceu Banjokô. Logo depois, foi enviada para Salvador e alugada como escravizada de ganho. Fez pecúlio e comprou sua liberdade e a de seu filho – aliás, como tantas mulheres negras no século XIX escravista. E aqui a estória encosta novamente na história (ou vice-versa?).
Kehinde, como sabemos, tem mais outro filho: Omotundem para ela, Luiz Gama para o pai português – e sobre essa vida já conversamos aqui (e juro que não vou dar mais spoilers). O que pretendi foi demonstrar como existem muitos desencontros e encontros entre ficção e não ficção. E como na falta de arquivos, a literatura negra vira história. Basta lembrar como as revoltas muçulmanas formam o coração do livro e aparecem cuidadosamente descritas, com um braço na ficção e outro na história dos documentos.
Chama atenção, ainda, como apenas no capítulo 5 tomamos ciência de um imenso detalhe: as pessoas negras eram então impedidas de exercer funções no exército, nas repartições, no clero, na política, e as que queriam fazê-lo requisitavam dispensa do “defeito de cor”. Definitivamente, Ana nunca entrega tudo de uma vez ...
Também as festas são lindamente descritas na obra. Explica Kehinde: “Se não tivesse saído da África, provavelmente teria sido feita pelos voduns da minha avó (...) Mas também confiava nos orixás. Herança de minha mãe. Porém cozinhava na casa de um padre e estava morando em uma loja onde quase todos eram muçurumins.” Ou então. “O salão parecia maior visto pelo lado de dentro, com o chão de tijolo e as paredes pintadas de azul-claro, onde estavam pendurados quadros com imagens dos orixás (...),. Havia também pequenos oratórios com esculturas em madeira tingida para representar a cor deles. A cor principal de Xangô é o vermelho, de Ogum é o azul, de Oxossi é o verde e de Oxum é o dourado, cada um tem a sua.... era um ambiente alegre e tranquilo onde me senti bem ...”
Mais ao final da história, Kehinde volta para Uidá e torna-se uma “Retornada”. Esses eram ex-escravizados que na África eram chamados de brasileiros, e de africanos no Brasil: estrangeiros em todo lugar. E por lá, a história seria outra: os imigrantes enriqueceram construindo solares coloniais para os ricos de Daomé e Lagos. Já Kehinde, a despeito de continuar cultuando os orixás, seguia também o catolicismo.
O livro acaba em 1899, com a protagonista sempre conversando com o filho: “Já deve ter percebido como pulo detalhes e conto com mais pressa ... é que já anseio por acabar logo com este período do qual falo agora e dar passagem ao destino”.
A magnífica obra de Ana seguiu seu destino, ganhando uma recepção imensa, que o transformou num ícone de um velho/ novo Brasil. Um defeito de cor é pioneiro dessa literatura histórica e negra brasileira, que por vezes faz as vezes da história. Como diz Saidya Hartman, em “Lose your mother”, se nos arquivos escravistas as vidas de pessoas negras surgem de forma fragmentada, apagada, ou mediadas por narrativas que não as suas, é preciso imaginar mundos possíveis, sentimentos, pensamentos e experiências.
Logo em 2007 a obra ganhou o Casa de las Américas. Em 2022 apareceu dentre “os 200 livros fundamentais para a compreensão do país”; em 2025 ficou em 1º primeiro lugar em nova pesquisa da Folha de S Paulo. Defeito de cor inspirou também exposição homônima no MAR, no Muncab, e no Sesc de São Paulo. Lula disse ter lido o romance na prisão, elogiou muito, mas anotou o tamanho.
Em fevereiro de 2024, a Portela cantou: saravá, Kehinde! Teu nome vive/ teu povo é livre/ teu filho venceu, mulher/ em cada um de nós derrame seu axé”. Na avenida, o testamento dela e os textos do filho, Luiz Gama, ditaram o enredo. Lá estavam Thais Araújo, Lázaro Ramos, Conceição Evaristo, Flávia Oliveira, Paulo Vieira, entre tantas outras pessoas, e Ana, com “seu samba no pé”. A família aqui presente, também desfilou – eram 46 parentes e amigos. Estavam também 16 mães que perderam seus filhos de maneira violenta, e dentre elas a mãe de Mariele Franco. Nunca o livro de Ana foi tão atual como nos dias de hoje, com as chacinas nos complexos do Alemão e da Penha. Kehinde é uma mãe que viu um filho morrer e outro desaparecer. Simbolicamente, ela é mais uma das muitas mães negras brasileiras enlutadas, que seguem lutando.
Para Ana foram seus antepassados que a brindaram com a história de Kehinde. E completou: “Nunca escrevo só”.
Na edição de 2022, aquela que traz desenhos de Rosana Paulino, há uma significativa (e quase imperceptível) nota final. “A primeira impressão desta edição especial foi realizada (...) 16 anos após a estreia deste livro. 16 são os principais odus do jogo de Ifá, responsáveis por gerar até 250 outros odus, todos eles associados a diversas itans, histórias que falam do passado, do presente e do futuro.”. Era Ana “cuidando” da primeira à última página, e ainda incluindo um conto inédito, que se chama “Ancestars”, e que começa assim: “É prá daqui a quanto tempo, a história? O tempo. Ah, o tempo!”
Ana está terminando um livro juvenil chamado Quem é Josenildo, que traz a história de um menino negro de 13 anos, em 2064. Assim, se Um defeito de cor volta ao nosso passado presente, Josenilde vai ao presente do futuro.
Na orelha encomendada para a edição especial de Um defeito de cor, a escritora, historiadora e dramaturga Cidinha da Silva escreveu, ecoando a própria Ana: “a história é o que é, mas é também o que poderia ter sido”. Soa como Kehinde comentando: “Mas não, aquele lugar dos sonhos existia mesmo e nem era tão longe de onde morávamos”.
Quase na última página, a protagonista anuncia estar “chegando ao fim desta viagem”. Ela que, fez uma travessia afroatlântica, de ida e volta – passou por Savalu, Uidá, Ilha dos Frades, São Salvador, Itaparica, São Luís, Cachoeira, São Sebastião, Santos, São Paulo, Campinas, e Uidá, Lagos – era agora uma matriarca, com filhos e netos. E conclui ao final da vida: “Não tenho defeito de cor algum e talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade”.
Os olhos de Ana se iluminam quando me declina seus autores prediletos – Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Jarid Arraes, Geovanni Martins, Itamar Vieira, Paulo Lins, Jeferson Tenório. E quando perguntei sobre suas maiores influências na escrita de Um defeito de cor ela citou: Alberto da Costa e Silva, Antonio Olinto, João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado – quatro acadêmicos, que, por vias tortas, também a guiaram até essa Casa, que agora, (Ana querida), também é sua.
Muito bem-vinda Ana Maria Gonçalves. Que você entre nessa ABL trazendo toda uma diáspora negra, africana e afrobrasileira que fez da ficção literária uma forma de memória, cobrindo lacunas dessa história ainda tão ocidental e masculina: presente nessa e em outras instituições. Que você chegue abrindo portas e nos ajude a imaginar um país mais digno para todas e todos nós. Traga por favor o sopro nos ouvidos que recebeu de Kehinde, a força e a coragem dela, que também são suas.
Passado e presente marcam encontro nessa tua literatura, Ana, que refaz a sina de um matriarcado e carrega a voz das ancestralidades femininas. Conforme menciona Kehinde: “A memória é mesmo o mais generoso dos retratistas”.
“Embala eu” de Clara Nunes e Clementina de Jesus é hino que a própria Ana recomenda na trilha sonora que incluiu no final de Um defeito de cor. É assim, também, que termino essa minha saudação e homenagem.
Que você seja muito feliz por aqui na Abl. Pois, como diz Juliana Borges: uma mulher negra feliz é um ato revolucionário.