RESPOSTA DO SR. FERNANDO MAGALHÃES
SENHOR Ramiz Galvão:
Sobre esta cadeira, em que vos sentais com tanta dignidade e tanto lustre, paira uma sombra viva. A Academia, dando-vos o lugar que pertenceu a Carlos de Laet, redime-se largamente de uma apostasia que muito vos melindrou e sente-se perdoada com a generosidade da nossa solicitação. Já devíeis ser desta companhia, mas não a quisestes, a princípio, nem ela vos quis mais tarde e, nesses 15 anos em que, de um lado e de outro, trocaram-se silenciosos desejos, pudestes ser esperado aqui suavemente, porque o convívio carinhoso, fidalgo e culto de Lauro Müller conseguiu compensar o vosso afastamento incompreensível.
Não vos coube a lugar que Rio Branco sublimou e que cobiçastes com o direito dado por nobreza, sentimentos e predileções comuns. A sorte reservava à vossa palavra a vida prestante e modelar de outro como vós, de igual crença, de igual mister e de igual engenho. Raramente se confundem, como agora, numa só oportunidade, a sucessão e a substituição. Ninguém melhor do que vós recorda a figura excepcional do companheiro egrégio a quem o tempo, como a vós, poliu na perfeição e no entendimento. Viestes ambos da mesma era, crescestes nas mesmas letras, andastes pelos mesmos trabalhos, seguistes os mesmos rumos, servistes às mesmas convicções, primastes na mesma sabedoria; ambos oriundos do humanismo erudito que, passados tantos séculos, engendra ainda, de longe em longe, ao sabor dos moldes clássicos, o moderno cidadão da antiguidade. Ele foi, como sois, na significativa coincidência dos destinos, estranho depositário da tradição da eterna beleza e da eterna bondade humana.
Ateniense um, que sois vós; latino outro, que era ele. Ele foi esse Terêncio Varrão, afamado romano, poeta satírico, gramático, arqueólogo, historiador, sábio e fecundo, da estirpe e do estro patriótico de Névio e de Ênio, crítico zombeteiro, polemista, filólogo, vulgarizador infatigável e enciclopédico, ardoroso espectador da velha república e do império nascente. Vós, se não vestísseis o vistoso fardão, que é a libré da imortalidade, ao entrardes aqui aplaudido e consagrado, no brio da vossa figura romântica, sempre donairoso de porte e ainda exemplar de atitude, eu vos diria envolto na clâmide helênica, ressuscitando o lúcido Isócrates, orador amplo, harmônico, ritmado, também historiador, também preceptor de príncipes que, na época de Xenofonte, durante meio século, professou a eloqüência perfeita às multidões de toda a Grécia.
Cadeira predestinada essa, cuja tradição fértil o vosso nome mantém com galhardia. Parece reservada à longevidade robusta exercendo o patriarcado do trabalho. Porto-Alegre, o patrono, grande mestre das artes, encaneceu primoroso idealista e patriota. Foram magníficos os oitenta anos do vosso antecessor, altíssimo mestre das letras, fulgurante, desassombrado e fecundo. Vindes aqui, mais idoso ainda do que os outros, mas podendo ser admitido sem protesto entre os da nossa classe pelo aspecto sólido, a visão exata, a imaginação límpida, festejado mestre das ciências, amigo dos livros em convívio absorvente e fiel, consolando a existência longa na evocação erudita do passado e reverdecendo-a, ao mesmo tempo, na alegria das almas infantis, paternalmente aquecidas pela larga experiência do vosso conselho e pela brandura imutável do vosso coração.
Abençoada Cadeira que guarda o tesouro da velhice lustrosa, igual à agerasia de Sófocles, mais imponente do que a severidade dos seus juízes, livrando-o da sentença da interdição só com o ouvirem-no recitar o Édipo Coloneu, seu último poema, seu máximo argumento pela mocidade de um espírito alcandorado na perfeição. Ditoso fado vela sobre esse pouso de veteranos, homens duradouros e úteis. Sois o terceiro a enriquecer-lhe a tradição de perenidade infatigável, numa sucessão de vidas largamente experimentadas na rudeza da obrigação apostolar, semeadoras daquela sombra remota que será o agasalho da posteridade.
Quem vos precedeu neste lugar, Sr. Ramiz Galvão, foi um homem raro e digno. Nunca desmereceu em qualidades, em ornamentos e em crenças. Traçou um caminho penoso e único, e percorreu-o sem hesitação, disciplinado no sentimento, independente na opinião, subordinado no dever, rebelde na impostura, irreverente na futilidade. Anos e mais anos passou pensando, escrevendo, ensinando. E quando a morte o escolheu quase sumariamente, mal lhe festejavam a formosa lucidez octogenária, ainda melhor pensava, melhor escrevia e melhor ensinava.
Na sua casa, que foi o lar de muito desamparo, exemplificou em afetos e em virtudes; no labor, que foi o pesadelo de muita inconseqüência, primou em energias e em temeridades. Afagou e feriu, acolheu e invectivou, acreditou e repeliu, serviu e desafiou, educou e combateu, pregou e demoliu, contrastes derivados da sua coerência a lutar com a gente e com o tempo, iguais no ardil e na hipocrisia. Não se explica, pois, por um inesgotável quinhão de ressentimentos, a sua teimosia partidária. Monárquico destemido e orgulhoso, muito menos a forma de governo do que a forma dos governantes forçou o seu radicalismo. Ele crescera e amadurecera na lição de respeito, de magnanimidade, de abnegação que o último depositário do poder perpétuo no Brasil soube dispensar aos que participavam do seu império. Então, daquela memória capaz de conservar a descrição minuciosa de 214 ossos humanos, nunca mais se apagou a lembrança confortadora, e, por isso, numa gratidão magnífica transferiu ao regime a excelência do seu servidor.
Ninguém negará a Carlos de Laet a sinceridade tanto na fé quanto nas convicções e na vocação primacial. Vocação de mestre, que acabais de enaltecer com o entusiasmo dos extremados serventuários do mesmo ofício. A palavra professoral, de que Laet dispunha com a maior largueza e a maior autoridade, nos países adolescentes ameaçados de desregramento ou eufóricos de inconsciência, esperando na latência dos seus grandes surtos o comando da arrancada vitoriosa; a lição magistral que instrui, prepara e amolda, tem sido, nos feitos de glória e de grandeza do Brasil, a mais poderosa arma de regeneração e de triunfo. Foi com ela que a nação aprendeu a altivez de sua independência, a coragem na defesa do seu solo, a abnegação na sua campanha emancipadora, a fraternidade nas suas demandas confinantes. Cabe aos mestres, mais do que nunca, a missão formidável e sagrada de instruir um povo ansioso e aflito na confiança e na brasilidade; a brasilidade, a estrutura artística e poética do admirável Porto-Alegre que soube cantar:
Ó meu céu, meu céu querido,
Quando a meus olhos brilhares,
Min’alma irá pelos ares
Beijar teu solo florido...
e a confiança que vós, preceptor de príncipes, dissestes ter transmitido aos netos do Imperador, mandando-os obedecer à soberania do povo, para cuja felicidade um descendente de reis apresta-se no trato da tolerância, da benignidade e da virtude. Com certeza, hoje que sois simplesmente preceptor dos filhos do povo, tampouco permitireis que os preparem para garantir o proveito dos reis e a arrogância dos senhores.
Como o seu patrono e o seu sucessor, Laet formou no jornalismo militante. O jornal foi sua outra predileção e aí galgou um mestrado inigualável. A princípio, era o jornalista crítico, o cronista cintilante, o comentador gracioso, o narrador erudito. Entrou depois na liça política, onde perdeu lucros, mas conservou idéias, o que talvez não lhe sucedesse se o seu jornalismo fosse contemporâneo da política que, por semelhança, Medeiros e Albuquerque aliou à prestidigitação. Na Tribuna Liberal, seu centro de combate, ele conformara-se por um padrão de escol, o Visconde de Ouro Preto, varão fúlgido que, no pânico de 15 de novembro, encarnou a dignidade humana como síntese luminosa e derradeira de toda uma geração de grandes estadistas. De tal exemplo, nasceu a intolerância leal, a firmeza impetuosa com que Laet defendia a monarquia e os seus homens. Teve que sofrer o martírio da profissão, suspeito, espoliado, exilado, cada vez mais fiel à sua doutrina, cuja força amparara a liberdade morta que, outrora, fizera da imprensa o baluarte da república.
Como bom latino, porém, capaz de sobressair no círculo de Cipião Emiliano, resolveu mitigar-se nas linhas de Lucílio e cultivou a sátira, a companheira da maledicência, predicado de todos os indivíduos e de todas as épocas, no dizer de Horácio, a geradora do desenvolvimento moral exemplificado na filosofia grega que, com Timon de Filionte, ridicularizou os vícios e os sistemas do seu tempo. E viva, pronta, impiedosa, a sátira foi o derivativo de suas queixas e o divertimento de todo o mundo.
Nesta Academia ele foi preclaro. Conferiram-lhe o decanato tanto a idade quanto o espírito. Por 30 anos, foi a nossa grande autoridade nos segredos da linguagem e, outro Aristófanes de Bizâncio, estudou e conheceu a fundo todos os clássicos.
Eis porque, Sr. Ramiz Galvão, eu vos disse que sobre a vossa Cadeira paira uma sombra viva – é o nosso companheiro, nunca esquecido, murmurando aos seus vizinhos bastante da sua malícia e distribuindo por todos nós o benefício do seu saber.
Para um tal vazio, só uma personalidade como a vossa, Sr. Ramiz Galvão, valido do tempo que não vos toca, dileto da lida que não vos poupa, querido da fama que não vos abandona. A vossa vida interessa desde o primeiro instante. Ao abrirdes os olhos, era o fim da sangrenta campanha separatista que sonhara a pátria de Piratinim e a véspera do motim praieiro, que só por efêmero não desfraldou a mesma bandeira. Logo depois, começava a tranqüilidade da nação. Nem o sangue americano, impregnado de puritanismo, nem a ancestralidade platina, trepidante de pronunciamentos, são precisos para explicar a simplicidade, a conciliação, a constância, a conformidade dos vossos propósitos.
Nascestes com o Brasil pacífico; depois levaram o órfão para a casa chamada dos Amantes da Instrução; o menino só, mas decidido, passou galardoado pelo Colégio Pedro II; o moço estudante seguiu, no convívio beneditino, a regra da meditação e da paciência; o homem douto recebeu as insígnias professorais num concurso em que o amparou apenas a capacidade; o estudioso pôde conviver com uma biblioteca inteira; o mestre foi chamado a educar os príncipes; o plebeu ganhou foros de nobreza. O Imperador, farejador de méritos, acompanhava toda esta trajetória. E assim, como o primeiro refúgio, pelo nome, vaticinara uma carreira à criança desarrimada, o colégio compôs-lhe a vontade, o mosteiro moldou-lhe os hábitos, os livros semearam-lhe a inteligência, o mister aperfeiçoou-lhe a tolerância, o brasão nobilitou-se na obscuridade da origem.
Que mais faltaria para plasmar uma intelectualidade generosa, uma consciência liberal, uma alma democrática?
Não faltou nem a lição edificante dos acontecimentos desenrolados aos vossos olhos, sempre ávidos e sempre indagadores. Testemunhastes toda a construção nacional que é a história do Segundo Reinado, larga e luminosa história de um homem que, da sua majestade, tirou o patrimônio moral de um povo, garantido na liberdade, na segurança, na vida coletiva, pelo império da lei, de que era vassalo o voto do Soberano, rei filósofo, ledor constante de Píndaro e de Ésquilo, os que, mesmo a Júpiter, vedavam os regalos satânicos do arbítrio e do despotismo. Nesta história conta-se que, acima do poder vitalício, havia o credo da autoridade obediente e toda a narração destes cinqüenta anos, mesmo a frase cruciante da guerra, transformada pelo sectarismo mirrado em investida de imperialismo algoz, pode ser resumida no empenho de um príncipe bizarro em sacrificar a realeza aos desejos do povo, longamente instruído nos exemplos de seu governo.
Como bom cidadão destes tempos, Sr. Ramiz Galvão, acumulastes uma velha cultura que assombra mais de uma geração. Clássico, vernaculista, erudito nas latinidades, provecto no helenismo, sois do mesmo tomo que o foram o vosso antecessor e o vosso patrono. Os homens da antiga norma madrugavam no engenho humanístico e sabiam compreender o prestígio das velhas civilizações. Hoje, o mundo basta-se a si mesmo, sustentando-se indeciso e versátil na corrente que o transporta. A seita do “arrivismo” isenta o fugaz dominador contemporâneo do inquérito do seu passado; não importa quem tenha sido, basta que o seja ou possa ser. Nada mais natural aplicar-se a mesma regra à humanidade, embora os seus fastos devam ser uma lição de coisas; um pensamento de Sêneca e os anais da república romana de Cícero são lições eternas... Mas, estudar esse passado é parar na meditação, e a hora atual não é dos que meditam e sim dos que calculam. E os que calculam não suportam a universalidade das regras de harmonia e de exatidão com que o espírito platônico, inspirado nos frisos do Partenon, construiu as virtudes da antiga sabedoria.
Presentemente, é inoportuno saber-se que verdadeiro cidadão só foi o participante do sangue e do gênio do seu povo, povo de alma alada, como o divino pensador, elevando o homem no conhecimento da Idéia, em cuja contemplação o preceito socrático prepara os magistrados salvadores das instituições. Entretanto, como seria vantajoso saberem todos que o dever da moderação se aprende na escola de Aristóteles; que, pela lei, espartanos e atenienses sacrificavam a fortuna e a vida; que Timon denunciou a tirania das aparências; que um demagogo liberal e onipotente, por trinta anos de democracia áurea, deu o seu nome a um dos maiores séculos da história; que o desprezo do grego pelos bárbaros não significava o orgulho de Maratona, mas o horror ao despotismo; que, no conceito de Isócrates, é condição de bom governo, não o pórtico coberto de decretos, mas a justiça habitando a alma de seus homens. Os helenos criaram a razão humana, os latinos deram-lhe a ostentosa roupagem que, com a narração de Tito Lívio, gerou na era dos Antoninos a nova aristocracia herdeira dos atributos viris da Roma lendária.
Hoje, ninguém relata estas humanas relíquias nem as aponta à mocidade trêfega, porque a pedagogia pressurosa prefere confeiçoar as inteligências pelo processo da velocidade. O passado é morto, o presente é vertiginoso. O passado é a forma, o presente é o número. Tudo manda apressar para adestrar na cupidez, na aventura e no ganho. O idealismo da forma transe diante da prepotência do número. Talhada para o eterno, a humanidade evapora-se no instantâneo; no vendaval das alucinações esfolham-se as esperanças puras; o que foi eurritmia é hoje ataxia. É dolorosa a crise, mas passará se os povos esgotados seguirem, felizes e tranqüilos, para o remanso da simplicidade, porque enquanto as criaturas deliram na rapidez dos desejos sôfregos, a natureza eterna não altera o giro das esferas nem revela a palpitação invisível da vida misteriosa.
Os homens do risco e do ímpeto, se acaso forem valores, são-nos transitórios; só o homem de pensamento é valor sem usura. Sois, Sr. Ramiz Galvão, desta estrutura nobre, como um ateniense de Péricles ou um romano de Augusto, sabedor das nossas grandezas remotas, evocador das nossas epopéias esquecidas, a rever continuamente o legado das nossas bravuras, das nossas aflições e dos nossos sacrifícios.
Toda a vossa obra literária, toda a vossa produção intelectual é trabalho de restauração. Nas folhas do Púlpito no Brasil passam mais de 200 anos de palavra sagrada, vozes ungidas confundindo nas suas exaltações as magnificências da Igreja e a fortuna da nova terra que, na infância, se orgulhava da flumen orationes, do padre Antônio de Sá, indiferente à Corte “roda arrebatada onde, atados de seus desejos, volteiam os cortesãos miseravelmente alegres” e também aos postos “subidas cujos degraus se vencem a quedas”; terra nova e distante, visão melancólica do desterrado Bartolomeu de Gusmão, lamentando nostálgico na tribuna concionária “seu peito tão de bronze que não arrebenta de dor e de saudade”. Aos dezenove anos, estreastes no classicismo e na erudição com este volume de primores, onde vivem Vieira, Natividade, Sampaio, S. Carlos, Januário, Mont’Alverne, “todo o sal da terra que não perde o sabor e que se torna incorruptível”.
Com a Biografia de Frei Camilo de Monserrate pagastes cordialmente a proteção beneditina, onde se resguardou e se temperou a vossa mocidade trabalhosa e humilde. São 500 páginas de perseverança e de afeto, esplêndida maturação da vossa mentalidade. A convivência conventual aproximou-vos do frade fidalgo, arqueólogo raro e epígrafo precioso, padroeiro da vossa iniciação, que vos preparou em paciência e recolhimento para as linhas que revivem e afirmam um bem-aventurado da sabedoria. A obra é piedosa evocação e documento de privilegiado engenho; a vida do frade douto, egresso da sua época e magnífico contemporâneo da antiguidade, vale por um incunábulo em que as iluminuras são o estro do biógrafo ungido no devotamento.
Só a vossa pena poderia erguer tal monumento. Quando aos vinte e quatro anos de idade aceitastes a incumbência de, na Biblioteca Nacional, preencher o lugar de Monserrate, o renome do sábio floresceu na vossa atividade, que João Ribeiro, Capistrano, Cabral, entre outros, ilustraram numa colaboração de escol. A casa dos livros, que prodigalizou a esta Academia dois dos seus florões, Teixeira de Melo e Constâncio Alves, foi a outra cela do monge, em cujo grande espírito continuastes na lida afincada de organizar, distribuir, catalogar, revelar, enfim, o tesouro que a instituição ocultava, pensando, como dissestes, “naquele zelo pela causa pública que é o moral dos cometimentos úteis”.
Vai para quase meio século, deixastes a Biblioteca Nacional para onde havíeis transferido a legenda – “Psyches Yatreion” (remédios da alma) – que encimava o frontão da biblioteca de Mênfis; mas ainda hoje a vossa solicitude, a vossa mão, a vossa cabeça, guiam o indagador curioso e resignado. Em Pedro II, vezeiro na consulta aos alfarrábios, devoto daquele teto, apoiava-se a vossa dedicação. Não está bem inventariado o vosso incalculável esforço, que Constâncio Alves, numa nota inédita, julga deste modo: – “Sucessor imediato de Monserrate, Ramiz herdou a erudição do frade, acrescentada de qualidades extraordinárias de criador e administrador. A Biblioteca de hoje é, pode dizer-se, obra dele. Iniciou uma grande era de remodelação. Instituiu um trabalho sério. Os empregados não tiveram mais lazer para ouvir nas horas de expediente o realejo dos bons tempos.”
Nenhuma produtividade pode emparelhar-se com a que assinalou a vossa direção. São da época o magistral estudo sobre o abade Diogo Barbosa Machado, a publicação dos Anais, o repertório da exposição camoneana, e o famoso catálogo da História do Brasil, título suficiente para consagrar um nome benemérito.
Mas não cessa aí o vosso ardor de peregrino de remotas paragens. Os Apontamentos sobre a Ordem de São Bento, suave penhor de gratidão eloqüente, exaurem na corpulência e no arrumo dos episódios o acervo do nutrido saber e de santa misericórdia, que é a insígnia daquela confraria. Restaurador dos velhos costumes e dos fastos esquecidos, organizastes notoriamente o “Livro do Centenário” e os congressos históricos da Independência, compusestes as orações do Instituto e outros empreendimentos gigantescos que não vencem a invejável operosidade da vossa velhice verde.
Só o Vocabulário, produção singular e exímia, bastava como credencial à Cadeira que a Academia vos concedeu. Ninguém, novato ou inveterado pesquisador da linguagem verdadeira, dispensará assistir-se deste elucidário em diária consulta e contínuo proveito. Filólogo de preço, helenista único, contribuístes para a instrução vernácula com um livro duradouro, afirmação do vosso rigor de etimologista, defensor da grafia veneranda, intransigente na segurança secular dos caracteres mudos, estigmas da origem genuína, velha guarda irredutível e firme em meio da anarquia das simplificações das extravagâncias e dos regionalismos.
Não cabe uma crítica da vossa obra, Sr. Ramiz Galvão, nesta oração de boas-vindas. Aceitei a honra de vos receber somente para me aproximar do oráculo e ouvir as suas sentenças, lustrando-me na limpidez de suas palavras. O tempo, o labor, a cultura, o préstimo, a qualidade, alfaias todas vossas, são os pergaminhos da eminência de onde a sumidade do verbo reboa na vassalagem da admiração silenciosa. Como em Áulis, na tenda de Aquiles, só Nestor falará na assembléia dos maiores.
No Instituto Histórico deram-vos as perpetuidades na tribuna panegírica e voluntariamente vos investistes, pelo mesmo prazo, na serventia de restaurar as crônicas sepultas. Em orações perfeitas, e em escritos acabados, ensinais o nosso passado. Não conheço presentemente mister tão patriótico e tão promissor. Um dos mais graves sinais de inquietação nacional é o esquecimento dos dias fecundos de liberdade e de confiança; na hora das apreensões nada como se retemperar o desassossego na lembrança da tranqüilidade fértil. É o preito que se deve às vítimas da indiferença.
Muito tendes porfiado em tais propósitos de reparação e de justiça. Desde 1910, nos congressos de História, em 1922 nas diversas festividades comemorativas do primeiro século de Independência, em 1925 no centenário de Pedro II, com a vossa colaboração o Brasil antepassado exibe-se hercúleo e opulento, para orgulho da nossa raça. Mais fecundo não poderia ter sido o exemplo do vosso caríssimo Instituto onde moram as nossas glórias, veladas pelo amor que vós e os daquela Casa votais à vida do Brasil abundante e bem-fadado. De tal exemplo proveio a patriótica predileção de hoje pelos estudos históricos brasileiros, dando corpo às dissertações e às biografias e interesse às divulgações ligeiras de ficção e de facécia.
É a reação natural porque o advento republicano quase perverteu a consciência nacional no julgamento do segundo reinado. Não foi, todavia, uma sentença definitiva, mas apenas o desvario ruidoso dos desensofridos e dos surpresos, convencionais inofensivos, terroristas apenas no colorido vistoso das roupas de espavento, com a feição inocente encarrancada na sombra misteriosa dos largos feltros desabados. Assim era a indumentária dos maiorais da propaganda que, por fim, só Quintino mantinha inflexível e hierático, em negror simbólico, a debruar de luto o seu aspecto melancólico e a sua voz plangente, compondo severamente a figura taciturna e profética da desilusão.
Destemperou nos conceitos a demagogia nascente. Uma voz mórbida gritou em plena Constituinte a apóstrofe irritante: “O Senhor Pedro de Alcântara foi um mau funcionário.” A sanha democrática protestou lealdade com a demolição do passado e seus honrados servidores. Por isso, a gente empubescida após 1889 não encontrou quem lhes contasse a crônica do Império decaído. Na primeira hora do triunfo, derrubaram símbolos, mutilaram monumentos, na insane pretensão de apagar o tempo e arrasar a história, supondo poder exilar no mesmo dia o Monarca e seus grandes exemplos. Mas toda esta geração menina, que não preparou nem desfrutou a República, sem o tédio dos enfartados ou a macilência dos preteridos, proclamou na idade madura, sucumbida de incertezas, a glorificação do brasileiro benemérito, canonizado 37 anos após o banimento, pela letra da lei republicana: “exemplo e lição da sua raça, na prática das mais altas e raras virtudes” (Decreto 17.125, de 1 de dezembro de 1925). Essas virtudes, Aristóteles ensina na sua Política, mandando não levar o princípio do regime às suas extremas conseqüências, para bem da pátria próspera e do cidadão feliz.
O Brasil inteiro consagrou o centenário de Pedro II. Colaborastes com toda alma, neste preito por dever de extremada devoção. Graças à nobre justiça da República, guardamos a relíquia das cinzas do excelso cidadão; podemos apontar, ensinando, a retidão da sua vida; nas estátuas eternizamos sua feição de bondade ou sua atitude de pensador. Pagamos honradamente uma grande dívida, não sem o murmúrio dos intransigentes que são hoje a prole escassa dos famosos históricos, os tutores da República nascente.
Os históricos, arautos da idéia revolucionária, sempre fixados no velho sonho, nunca deixaram de viver na inquietude combatente do seu extinto ministério. A boêmia letrada, a juventude escolar, o militarismo filosófico, constituíam o pelotão republicano, que o manifesto de 70 tocou a rebate e que a lei emancipadora reforçou pela conscrição dos ressentidos. Derrubada a dinastia débil, a condição do histórico tornou-se ou credencial de boas prebendas, ou orgulho de abandonos amargurados.
Aproveitados uns na fartura da governança, definharam outros no azedume do esquecimento e estes não se convenceram da realidade do regime, acirrados sempre contra os usurpadores, continuando, malgrado a queda do trono, os privilégios da organização monárquica que tanto haviam desafiado as aguerridas caravanas dos predicadores da democracia. A velhice aquietou sobreviventes desesperançados e alquebrou legionários reivindicadores. O verbo dantoniano da propaganda sepultara-se epicamente na fornalha vulcânica; o apóstolo idolatrado, concitador da mocidade, emudecera depressa na morte resignada.
O histórico sentiu cedo o calafrio das duas tragédias e, impregnado de comtismo miliciano, de romantismo demagógico, de plebeísmo autoritário, plantou-se intransigente e inamovível à margem dos acontecimentos, faquirizado na contemplação do preconceito, desapercebido do novo rumo onde as contradições, as felonias e os despeitos atordoaram e tresmalharam na confusão e na rebeldia. Essa individualidade, tipo hirsuto e sincero na galeria política do país, mergulhado no sebastianismo dos prometimentos já renegados e das austeridades logo prostituídas, não mais perdeu o hábito da convicção querelante e áspera, derivando a sua acrimônia alerta na excomunhão dos adventícios favorecidos e aquinhoados. O sentimento antidinástico absedou o histórico no julgamento do monarca morto, cuja reparação provoca, de quando em quando, o comentário incisivo reincidente no erro de um juízo iníquo e tumultuário. Não abjuro, nesta homenagem calorosa, à minha congênita convicção republicana, como não renegastes, Sr. Ramiz Galvão, a vossa fidelidade ao Soberano amigo, que recusou o sacrifício de continuardes no desterro a educação de seus netos.
Havíeis aprendido com os vossos protetores, os frades exemplares, o quanto é leve o hábito da pobreza. Não vos faltaram encargos de relevo, mas pelos costumes da época, era desonra andar aos sobejos nos proventos e nas propinas. Louca renúncia seria insistirdes no caminho do exílio e da penúria. Mas Benjamin Constant, a par dos vossos méritos, quis désseis à instrução do país republicano a garantia da vossa capacidade. Revertestes à canseira do magistério. No ensino municipal introduzistes as escolas profissionais; no secundário, professastes o grego; no superior, afastado da cátedra, volvestes, muito depois, à barafunda da sua decadência.
Faço aqui uma restrição à vossa habilidade no recompor e beneficiar a causa pública. Foi a única de vossas obrigações que não deixou memória. A inesperada exceção isenta-vos da responsabilidade. O ensino nacional, neste último quartel de século, arrasta-se golpeado de decretos, emplastrado de regulamentos, remendado de avisos, na resignação do mutilado, mártir de si mesmo, com direito quase ao descanso definitivo entre as cobiçadas riquezas dos museus ou as ruínas vivas e sagradas que se escondem nos esquecidos abrigos dos inválidos da Pátria.
Na carreira professoral, de que éreis renunciante de alta hierarquia, chegastes ao sólio pontifício. Presidente do Conselho Superior do Ensino, Reitor da Universidade, assim encerrastes a vossa afortunada missão de mestre, recolhido à obscuridade quando a teratologia burocrática concebeu o mito polimorfo, figura canhestra, soprada do caos, impado de dignidade e de mandos, como nas apoteoses de entremez e nos cortejos de folgança.
A Academia foi buscar-vos, Sr. Ramiz Galvão, nessa penumbra repousante para seu serviço e para sua grandeza. Encontrou-vos à lareira alegre da caridade gazalhosa, prometendo a fartura da vida útil aos pequenos desaninhados, buliçosa reminiscência da vossa infância semelhante, no exercício de uma paternidade espiritual! Que linda sina a vossa! Hoje, mestrando a filhos do povo como ontem a filhos do príncipe, no abençoado fadário de prover a duas realezas. A Pátria não admirou a realeza do príncipe que devíeis conduzir; possa ela sentir um dia a realeza do povo que também vos coube preparar.