Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > ABL na mídia - Estadão - Qual é o segredo de Ariano Suassuna, o ‘realista esperançoso’ que viraliza 10 anos após sua morte?

ABL na mídia - Estadão - Qual é o segredo de Ariano Suassuna, o ‘realista esperançoso’ que viraliza 10 anos após sua morte?

 

No dia 10 de agosto de 1990, um dia depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, o dramaturgo paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) foi convidado por um amigo para uma recepção em sua casa. A certa altura do jantar, a mulher do anfitrião virou-se para o visitante e perguntou: “Você, naturalmente, já foi à Disney?”. Suassuna, quase se engasgando com a comida, devolveu a pergunta: “Já fui aonde?”. “À Disney?”, repetiu ela. “Não, nunca fui”, respondeu ele. “Foi aos Estados Unidos e não foi à Disney?”, insistiu a mulher. “Nunca fui aos Estados Unidos”, explicou o convidado. “Nunca saí do Brasil”.

Dali a pouco, como quem tentasse mudar de assunto, o anfitrião emendou uma história qualquer sobre outro amigo. “Ele já foi à Disney, não?”, interrompeu a mulher, dirigindo-se ao marido. “Foi”, respondeu o dono da casa. Nessa, Suassuna pensou com seus botões: “Essa mulher divide a humanidade em duas categorias: quem foi à Disney e quem não foi”. E concluiu: “Estou desgraçado!”.

Há pelo menos dois vídeos no YouTube com a história acima: um deles exibe uma entrevista no Programa do Jô, da TV Globo, em 2007; o outro reproduz uma “aula-espetáculo” no Tribunal Superior do Trabalho (TST), em 2012. Só o segundo, de quase sete minutos, já registrou 4,5 milhões de visualizações. Um terceiro, intitulado Visitas Chatas, já alcançou 7,6 milhões de views!

Um levantamento da Fundação Getúlio Vargas Comunicação (FGV) revela que, só em 2024, o YouTube contabilizou 8 milhões de visualizações em novos conteúdos relacionados ao autor de O Auto da Compadecida. Nos primeiros sete meses de 2025, foram registradas 2,2 milhões de interações no Instagram. Um aumento de 220% em relação ao mesmo período de 2024. Vídeos publicados no TikTok registraram uma média de 100 mil visualizações cada um.

“Em tempos de tarifaço, trechos relacionados à temática da soberania nacional tiveram um acréscimo de interesse”, observa o sociólogo Victor Piaia, autor da pesquisa. “Poderíamos ter um ambiente digital menos tóxico se valorizássemos conteúdos de qualidade.”

Muitas das histórias contadas por Suassuna em suas “aulas-espetáculo” estão reunidas em Lições de Realismo Esperançoso – A Sabedoria e o Riso de Ariano Suassuna (Nova Fronteira), que deve chegar às livrarias em meados de novembro. Ao longo de 152 páginas, o poeta Carlos Newton Júnior, um estudioso da obra de Suassuna, reuniu 184 verbetes, extraídos das mais diferentes fontes: ensaios, artigos, depoimentos, entrevistas... Há, até, trechos de duas aulas magnas: uma da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e outra da Universidade Federal da Paraíba (UFP).

“Convivi com Ariano por 30 anos e guardo muitas lembranças dele. Uma das mais fortes ocorreu durante a aula-espetáculo que ele ministrou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, durante as homenagens pelos seus 80 anos, em 2007. Foi ovacionado pelo público que lotou o teatro e o aplaudiu em cena aberta”, relata Newton Júnior, responsável pelo lançamento de outras obras do autor como A História do Amor de Fernando e Isaura (2019), A Pensão de Dona Berta e Outras Histórias para Jovens (2021) e O Desertor de Princesa (2022), todas da Nova Fronteira.

Newton Júnior conheceu Suassuna em 1984 na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – o primeiro era aluno de Arquitetura e o segundo, professor de Estética. Gostou tanto da aula que fez mais quatro disciplinas com seu docente favorito: Literatura, História, Filosofia e Artes Plásticas.

Suassuna foi professor da UFPE por 33 anos: de 1956, quando a instituição ainda se chamava Universidade do Recife, a 1989, quando se aposentou. Suas primeiras aulas-espetáculo surgiram por volta de 1995, quando exerceu o cargo de secretário de cultura do governo Miguel Arraes. “Suas aulas, desde o começo, foram verdadeiros espetáculos”, derrama-se. “O sucesso delas resultava da sólida formação cultural do professor aliada à sua capacidade incomum de se comunicar com o público. Valia-se sempre de exemplos do risível para ilustrar os conteúdos abordados”, afirma. Sobre o aluno, o professor declarou, em 2003: “Eu digo: ‘Está errado’. Ele diz: ‘Não’. Quando vou ver, ele tem razão”.

Lembrança da primeira aula-espetáculo de Ariano Suassuna

O jornalista e escritor Raimundo Carrero acredita ter assistido a uma das primeiras “aulas-espetáculos” de Ariano Suassuna, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Primeiro, houve um debate: estavam lá Ariano, Carrero, o poeta pernambucano Marcus Accioly e o escritor mineiro Affonso Romano de Sant’Anna. Depois, veio a palestra, ilustrada com quadros de artistas que integraram o Movimento Armorial, e com bandas de Pífanos, Maracatu e Bumba Meu Boi. Terminada a palestra, Ariano virou-se para Carrero e segredou: “Daqui para frente, não haverá mais palestra ou conferência. Vou chamar de aula-espetáculo. A pessoa pode até dizer: ‘Não gosto do tema, mas o professor é um espetáculo…’”.

Aforismos e frases icônicas de Ariano Suassuna

Logo na introdução, Newton Júnior esclarece um mal-entendido. A frase “Não troco o meu oxente pelo ok de ninguém”, tantas vezes atribuída a Ariano, não é dele. É de autoria de um cantador pernambucano chamado Oliveira de Panelas.

Em compensação, Suassuna é autor de dezenas de tiradas, entre divertidas e reflexivas. Como a que inspira o título do livro: “O pessimista é um chato; o otimista, um tolo. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.

Apaixonado pela cultura popular brasileira, Suassuna não economizava críticas ao “colonialismo cultural”. Exemplos: Coca-Cola (“Num país como o Brasil, que tem água de coco e caldo de cana, só com muita propaganda pode-se convencer alguém a tomar uma Coca-Cola”), rock (“Dizem que o rock é uma música universal. Isso não existe. Os sons universais que conheço são o espirro, o arroto e outros piores”) e a palavra show (“Eu não dou ‘aula-show’. Dou ‘aula-espetáculo’! Show, na minha terra, é interjeição de espantar galinha”).

‘O êxito é o sucesso que se estende ao longo do tempo’

A jornalista Adriana Victor perdeu a conta de quantas aulas-espetáculo assistiu. Foi assessora de imprensa de Suassuna em seu primeiro mandato como secretário de cultura de Pernambuco, de 1995 a 1998, e secretária adjunta, de 2007 a 2010. Quando a cidade não tinha teatro, ele e sua trupe, formada por dois cantadores, cinco músicos e cinco bailarinas, faziam as aulas-espetáculo em salas de aula ou quadras poliesportivas.

“Certa vez, fizemos uma, inesquecível, em um presídio feminino, no Recife. Noutra ocasião, na beira do rio, em Belém do São Francisco”, recorda Adriana. “Costumava dizer que sucesso e êxito são coisas diferentes. Sucesso é efêmero, êxito é perene. Só o tempo poderá dizer se um sucesso se transformará em êxito”.

Nessas horas, usava Dom Quixote, a obra-prima de Miguel de Cervantes, como exemplo. “Dom Quixote é meu contemporâneo, é seu contemporâneo, que é jovem, e, quando os bisnetos de seus netos já não estiverem mais vivos, ele estará”, declarou, em 2005.

Adaptação da obra de Suassuna

Boa parte da obra de Ariano Suassuna foi adaptada para o teatro, o cinema e a TV. Só Luiz Fernando Carvalho dirigiu quatro delas: Uma Mulher Vestida de Sol (1994), A Farsa da Boa Preguiça (1995), Folia Geral (2000) e A Pedra do Reino (2007), todos para a TV Globo.

Por ocasião dos ensaios para A Pedra do Reino, Suassuna deu uma aula-espetáculo em Taperoá (PB) para o elenco e a equipe técnica. Foi lá, a 216 quilômetros de João Pessoa, que o pequeno Suassuna viveu dos seis aos dez anos.

“Atribuo o sucesso de Ariano nas redes sociais ao seu carisma e à sua erudição, que se manifestava a partir de quatro eixos principais: escritor, filósofo, poeta e palhaço. Logo, estamos cercados. Não há ser humano na face da Terra que não caia em seu encantamento”, afirma o cineasta que teve um personagem do romance Dom Pantero no Palco dos Pecadores (2017), concluído dias antes de sua morte, batizado com seu nome. “O que guardo de cada uma dessas experiências é uma mistura infinita de risos e lágrimas.”

Parceiro de Carvalho em duas adaptações da obra de Suassuna para a TV – o especial A Farsa da Boa Preguiça (1995) e a minissérie A Pedra do Reino (2007) –, o escritor Bráulio Tavares conheceu Ariano durante uma aula-espetáculo no Teatro Municipal de Campina Grande, em 1972.

Na ocasião, Tavares cursava Ciências Sociais na UFPB. Com o tempo, os dois voltaram a se encontrar outras vezes: como em 1993, para as filmagens do documentário O Senhor do Castelo (2007), do cineasta Marcus Vilar. “Tinha o dom da palavra e usava um vocabulário acessível. Em sala de aula, era um excelente improvisador na hora de responder perguntas ou rebater provocações”, destaca o autor de ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007). “É pena que, nas redes sociais, as pessoas prefiram reproduzir apenas os ‘momentos engraçados’. Perde-se, às vezes, o entusiasmo sério e fervoroso com que ele expunha suas ideias sobre a arte, a vida e o Brasil”, lamenta Tavares.

“Dizem que a Copa foi muito bonita e organizada. Eu quero lá saber disso? Eu queria era ganhar!”, protestou, bem-humorado, o torcedor do Sport Club do Recife, seu time do coração.

Por último, ainda recitou os versos de um poeta popular: “A Alemanha bebe cerveja / O Brasil bebe pitu / A Alemanha toma na taça / E o Brasil toma na rima…”.

Cinco dias depois, em 23 de julho de 2014, Suassuna morreu, aos 87 anos, vítima de uma parada cardíaca (relembre aqui). Morreu, não; encantou-se, como ele mesmo gostava de dizer. “Dentro de sua genialidade, ele falava de coisas profundas com grande leveza. Não contava histórias por contar. Passado o riso, vinha a reflexão”, avalia João Suassuna, o neto mais velho. “A arte, quando é boa, não envelhece. E a de meu avô, Ariano, continua viva, atual e pulsante.”

Matéria na íntegra: https://www.estadao.com.br/amp/cultura/literatura/qual-e-o-segredo-de-ariano-suassuna-o-realista-esperancoso-que-viraliza-10-anos-apos-sua-morte/

03/11/2025