5 gerações.
Esse foi o período que o Brasil precisou viver para, finalmente, ter uma mulher negra na Academia Brasileira de Letras (ABL). 128 anos... quase nossa República inteira.
No final de julho de 1897, mais especificamente no dia 20 do mês, era criada no Rio de Janeiro a Academia Brasileira de Letras, na rua do Passeio, no centro da cidade.
Inspirada na Academia Francesa, o objetivo da recém-criada instituição era cultivar a língua e a literatura nacionais. Ali, em 1897, ficou decidido que ABL seria composta por 40 membros, conhecidos como "imortais", que seriam eleitos por seus pares para ocupar cadeiras numeradas.
A única forma de se tornar um "imortal" seria após o falecimento de um dos membros da Academia. De lá pra cá, 293 pessoas já vestiram o fardão da imortalidade, que assim como quase tudo no Brasil, é um privilégio concedido quase que exclusivamente aos brancos, sobretudo aos homens, que sempre dominaram as 40 cadeiras da instituição.
A coerência sórdida
Eu poderia gastar muitas e tantas linhas para dizer do absurdo, e ao mesmo tempo da coerência que é a Academia Brasileira de Letras ter demorado 128 anos para eleger uma mulher negra no seu panteão. Absurdo, porque não faltam exemplos da qualidade literária dentre muitas mulheres negras, a despeito de todas as barreiras que foram e seguem sendo impostas para dificultar que mulheres negras escrevam e também sejam reconhecidas como autoras.
E a coerência sórdida de um país no qual as classes dominantes insistem em definir quais lugares as mulheres negras devem estar. Poderia também dizer que, para além desse absurdo coerente, nós, mulheres negras, não aceitamos o lugar que nos foi imposto.
E muitas de nós transformaram a escrita numa forma de estar e mudar o mundo. Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Cristiane Sobral, Eliane Alves Cruz, Jarid Arraes, Lilia Guerra, Ryane Leão, Dona Jacira (falecida recentemente) são alguns exemplos para ficarmos dentro do campo da literatura brasileira.
Mas ainda que seja fundamental seguir denunciando o inaceitável - não pensem que ficaremos satisfeitas com a presença de uma única mulher negra na ABL - eu queria falar de algo que considero maior e mais importante: o quanto perdemos quando tiramos as mulheres negras de nossos enredos "oficiais".
História que rompe com padrões eurocêntricos
Quem leu Um Defeito de Cor, da recém imortal Ana Maria Gonçalves, sabe que esse romance é inspirado na vida de Luiz Gama, um dos mais importantes abolicionistas brasileiros. No entanto, a personagem principal da obra não é ele, mas sim sua mãe, uma mulher que ficou conhecida como Luiza. Luiza Mahin.
São quase 1.000 páginas nas quais Ana Maria Gonçalves nos invoca a (re)conhecer a história do Brasil num dos seus momentos mais deletérios: o período escravista. Uma travessia que tinha licença poética para contar sobre a escravidão a partir de suas entranhas, com todos seus horrores, suas poucas possibilidades de saída, e toda humanidade que estava em jogo. Uma história da escravidão enunciada por uma mulher negra.
Ainda que impactante, o livro é uma ficção. Um romance histórico em torno de uma mulher que não sabíamos se tinha ou não existido. E então, (e nunca por acaso), no último domingo foi divulgada a pesquisa das historiadoras Lisa del Castilho e Wlamyra Albuquerque, cuja pesquisa fina nos arquivos baianos comprova a existência de Luiza e sua relação com o abolicionista Luiz Gama.
A história contada pela primeira mulher negra a se tornar imortal não era para ninar gente grande. Era história ficcionada sim, sem dúvida. Mas também muito bem amparada pela tradição oral, e a ancestralidade africana como pilares legítimos de conhecimento e de construção literária, rompendo com os padrões eurocêntricos que dominaram a produção e consagração da literatura brasileira por mais de um século. E se tudo isso não bastasse, agora o nó ficcional da obra aparece como história vivida, graças à uma pesquisa de ponta.
E o ponto que quero destacar nisso tudo, é que essa história só poderia ser escrita por uma mulher negra, o que não significa dizer que é uma história apenas para mulheres negras...
Ana Maria Gonçalves se junta a outras literatas e reescreve o Brasil a partir de uma lente que insiste em devolver humanidade, complexidade e centralidade às mulheres negras, desafiando os limites impostos por uma sociedade racista e patriarcal. Sua escrita é resistência, e reparação. E, como não poderia deixar de ser, é uma grande volta na "imortalidade" que conhecíamos até então.
Que seja só o começo do reconhecimento da infinitude daquilo que as mulheres negras são capazes de construir.
Matéria na íntegra: https://www.terra.com.br/noticias/coluna-imortalidade-e-escrita-de-outros-brasis,b9d58e38634bfb97bc9abad0d7c11dd8e6l2cb79.html
31/07/2025