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Lúcio de Mendonça

                       O REBELDE

É um lobo do mar: numa espelunca
Mora, à beira do Oceano, em rocha alpestre;
Ira-se a onda e, qual tigre silvestre,
De mortos vegetais a praia junca.

E ele, olhando como um velho mestre
O revoltoso que não dorme nunca,
Recurva o dedo como garra adunca,
Sobre o cachimbo, único amor terrestre,

E então assoma-lhe um sorriso amargo...
É um rebelde também, cérebro largo,
Que odeia os reis e os padres excomunga.

À noite, dorme sem rezar: que importa?
Enorme cão fiel, guarda-lhe a porta
O velho mar soturno que resmunga.

                                                              (Vergastas, 1889)

 

FLOR DE IPÊ

Na clara estação gorjeada,
Em flor o ipê se desata;
Ó bela árvore dourada!
Ó loura filha da mata!

O tronco, o pai, se revê
Todo ufano, todos zelos,
Nesses teus áureos cabelos
Que o sol beija, ó flor de ipê!

As abelhas, joias vivas,
Adereçam-te o toucado;
Diz-te frases expressivas
O sabiá namorado;

De ramo em ramo o tiê
Cai, como gota de sangue;
E a coral se enrosca langue
Nos teus braços, flor de ipê!

Mas, ai! tanta formosura,
Tão festejada e querida,
Pouco tempo vive e dura,
Logo cai a flor sem vida;

E sombrio e nu se vê,
Mudo, trágico, isolado,
Como um pai desamparado,
O velho tronco do ipê.

Na alegre quadra encantada
Dos sonhos e da esperança.
Vestiu-te a ilusão dourada
O coração de criança;

Surgiu-te - meu Deus! por quê? -
Ante os passos peregrinos
Criança de olhos divinos,
Loura como a flor do ipê.

Sonhos de que te cobriste,
Coração em primavera,
Caíram, todos, ai, triste!
Quanta dourada quimera!

Eis-te da sorte à mercê,
Já sem viço, já sem flores...
Aqueles pobres amores
Foram como a flor do ipê!
                                                                               (Canções de outono, 1896.)

 

A TAPERA

 

                                             Les temps sont accomplis : les choses se sont tues.

                                                                               LECONTE DE LISLE

A meio vale escuro, à beira do caminho.
Está silenciosa a velha casa em ruína...
Desabitado lar, abandonado ninho,
O horror da solidão fantástica o domina.

O horror da solidão, por quê? também na mata,
Na virgem, secular, inóspita floresta,
Há uma calma grande, em que a alma se dilata;
E, ao invés do terror, que portentosa festa!

Mais funda é a solidão na agreste cumeada
Onde não pisou nunca o bípede tirano;
Mas lá quanta alegria aberta e iluminada!
- O cunho do terror vem do vestígio humano.

Vê-se um velho postigo escancarado ao poente...
O tosco parapeito apodreceu... e vê-se
Que ali chorou, talvez, de saudades do ausente
Uma noiva fiel, que de esperar morresse.

A bela porta, franca outrora, está fechada...
É ninho de reptis a trepadeira amiga.
Que convidava a entrar na plácida morada,
Que já ninguém procura e a ninguém mais abriga.

Pobre, inútil ruína! Olhemos de mais perto,
Pelo teto, que abriu dos temporais o açoite...
Brotam ervas do solo esquecido e deserto...
E este era o coração da casa, ao lar, à noite!

Aqui se reunia, em pacífico bando,
A família, a sonhar os dias do futuro,
Enquanto, fora, o vento andava praguejando
E a noite ia seguindo o seu caminho escuro.

Ali, para o nascente, havia um aposento
Pequeno e recatado... ai! ali, porventura,
Morava a sinhá-moça, o riso, o encantamento
Da rústica vivenda, a doce criatura!

No vão dessa janela aberta para a estrada
Quanta cena de afeto ainda se imagina!...
Um cavaleiro ao longe a sumir-se, e inclinada
Ao parapeito, a branca e chorosa menina...

Desconjuntado, já caindo-lhe os pedaços,
Vê-se um velho oratório... e, coberto de poeira,
Um Cristo mutilado abre os divinos braços...
Quanta fé o beijou na angústia derradeira!

Cá fora, indiferente, ingratamente alheio,
Passa o vento da mata, o alado vagabundo.
Sem um beijo, sequer, ao esqueleto feio
Da ruína sem dono, esquecida no mundo!

Somente à noite agora, ao ter da lua triste
A compassiva luz fantástica e serena,
Reanima-se a tapera e ressuscita e existe
De um sombrio existir que mete medo e pena.

Existe uma alma assim... Outrora foi ruidosa.
Clara, feliz, brilhante à luz da primavera...
Agora é nua e só, - sombra silenciosa,
Morta à beira da vida... a lúgubre tapera!

                                                              (Canções de outono, 1896.)

 

                        IDEAL

Desde bem cedo me sorriste,
Ó luz da alma contemplativa!
Na minha noite escura e triste
Hás de brilhar, enquanto eu viva.

Astro do enlevo solitário,
Oculta flor do ermo saudoso,
Lâmpada do íntimo sacrário,
Etérea fonte de almo gozo.

Tu és, na altura inacessível,
O eterno prêmio que eu almejo
E sigo; brilhas impassível
E eu vivo, enquanto ainda te vejo!

Por mais que neste inferno pene
E arder-me a vida toda sinta,
Adoro-te, ó sonho perene!
Ó ambição da alma faminta!

Astro amigo, fulge e cintila.
E roto à vida o frágil nexo,
Venha-me à fronte, enfim tranquila,
A extrema-unção do teu reflexo!

                                             (Canções de outono, 1896.)

 

AVE MARIA

             ... à l'heure où la joie nous quitte...
                                                             ASMIN 
Ave, Maria... Era esta mesma a hora,
Este mesmo o lugar quando ela veio...
Quando perdi-me no amoroso enleio
Descia a noite como agora desce...
Ela os úmidos lábios entreabria
Para o céu, num sorriso, ou numa prece...
       Ave, Maria! 
Ave, Maria... Quanta vez às tardes
Viram-nos ambos num sonhar de doudos
Ao longe os montes se perdiam todos
Nos véus sombrios que além baixavam...
Minha alma à sua numa só se unia.
E os lábios dela e os lábios meus rezavam:
       Ave, Maria! 
Ave, Maria... Que formosa tarde
Era aquela da nossa despedida!
Era fatal partir, e foi cumprida
Minha sorte, que dela arrebatou-me!...
E a boca linda, que não mais sorria,
Na prece ardente murmurou meu nome...
      Ave, Maria! 
Ave, Maria... A hora ainda é a mesma.
Ainda o mesmo o lugar... mas já não vive
Aquele apaixonado amor que eu tive
E que tanto em saudade se revela...
Ela, a formosa desleal, mentia...
Vive, minh’alma, para orar por ela...
       Ave, Maria! 

                                                                           (Canções de outono, 1896.)

 

O HÓSPEDE

Ele aí está, que o diga o Oliveira, aquele rapagão de bigode louro e olhar azul, que viajou como caixeiro de cobranças, “cometa”, e hoje é repórter. Por sinal que foi a última viagem de cobrança que fez, e de tão horrorizado mudou de vida e profissão. Foi ele mesmo quem me referiu o caso. Aqui o dou pelo custo, sem nada meu.

                                                   ***
Ao cair de uma tarde chuvosa de março, chegava o cobrador, extenuado e faminto, a uma vendola à beira da estrada, da longa estrada fastidiosa, pelos campos, que vai de Alfenas ao Machado, no sul de Minas.
Junto à venda havia a casa de morada, pequena, tosca e suja, dum velho casal português, que ali se fixara e vendia os produtos da pequena lavoura, cultivada nas suas terrinhas, e os furtos trazidos à noite pelos escravos da vizinhança.

Pousada, não era costume dar-se ali; Alfenas ficava a uma légua, e os donos da casa diziam despachadamente que aquilo não era hospedaria. Mas, com o Oliveira, o caso era especial: trazia já as suas oito léguas bem puxadas e uma fome de carrapato, e depois, com tanta carga d’água, não havia meio de continuar viagem. Pediu pousada e ceia, pagando eu - acrescentou.

- Ceia, arranja-se-lhe - disse o Zé Manuel, o taverneiro velho; lá a cama é que está mais difícil, que não recebemos hóspedes para dormir.

E com o olhar consultava a mulher, a mulheraça, anafada e pachorrenta, aboborada para dentro do balcão.

- Não, por isso não seja - opinou ela; dá-se-lhe o quarto do Jequim...

- Bem lembrado - concordou o vendeiro; - temos ali assim um quarto agora desocupado, que é o de nosso rapaz, que anda por fora; lá para o Carmo do Rio Claro; tem cama e colchão, que é o preciso para dormir... Se lhe serve...

- Serve, serve - aceitou logo o Oliveira. - E deem-me alguma coisa que se coma; estou morto de fome!

Enquanto se punha a janta, desarretou a besta, guardou os arreios no quarto que lhe destinaram, contíguo à saleta da frente e com janela para a estrada; levou o animal ao pasto, um pastinho fechado, muito perto; e voltou para cuidar de si.

Antes, porém, de sentar-se à mesa, onde já fumegava o feijão com couves e a canjiquinha, pediu que lhe trouxessem uma peneira.

- Uma peneira! ora essa!

- É cá para uma precisão!

Trouxeram-lha, e ele então sacou do bolso das calças um maço de dinheiro em papel, uma bolada de notas úmidas da chuva que apanhara, e estendeu pelo crivo da taquara as cédulas grandes, de duzentos, de cem, de cinquenta mil réis, uma boa meia dúzia de contos. Passou a peneira para a ponta da mesa a que não chegava a toalha, e entrou a servir-se da ceia no prato de louça azul, com a colher de ferro.

Ao levar à boca uma colherada, surpreendeu à porta da saleta o olhar aceso com que lhe comiam o estendal das notas, a velha portuguesa, que o servia, e o marido, que entrava com uma garrafa de vinho.

Tão cobiçoso era o olhar de ambos, que coou na alma do rapaz um frio de medo e um clarão de pressentimento. Logo, ali mesmo, resolveu acautelar-se, arrependido da imprudência de ter mostrado tanto dinheiro.

Acabando de cear, declarou que muito cedo, ao romper do dia, seguia para Alfenas, e por isso deixava paga a hospedagem; deram-lhe a boa-noite e recolheu, com uma vela de sebo, ao quarto do Joaquim.

Mal se viu só, tratou de ajuntar as notas que espalhara na peneira, tornou a enfiá-las no bolso, e apenas a casa sossegou em silêncio, ali por volta da meia-noite, saltou pela janela com os arreios e a mala à cabeça, foi ao pastinho fechado, selou a besta e tocou para a cidade, ao belo clarão da lua que despontava.

                                                     ***

Nem bem se perdera ao longe o estrupido da besta que levava o cobrador, quando novo tropel de animal soou no terreiro da venda; era outro cavaleiro, que saltou do lombilho abaixo e em três tempos desarreou o cavalo em que veio e com um chupão nos beiços apinhados tocou-o para o campo.

- Diacho! minha janela aberta! - murmurou consigo. - Melhor! entro sem precisar bater e acordar os velhos a esta hora.

E, agarrando-se com o braço direito ao peitoril da janela, saltou para dentro, levando na outra o lombilho, o baixeiro e o freio, e logo tornou a fechar a janela, que o frio não era graça.

                                             ***

À alta madrugada, quando começava a amiudar o canto dos galos, dois vultos, cautelosos, sorrateiros, surdiram do interior da saleta da frente; um deles, o mais alto impeliu de manso a porta, apenas cerrada, e penetrou no quarto.

Da cama, ao fundo, ouvia-se a respiração compassada e forte de um bom sono ferrado. Aproximou-se o vulto, guiado pelo resfolegar do que dormia e pela tênue claridade que vinha da saleta, onde o outro vulto, agachado e trêmulo, sustentava e velava com a mão encarquilhada um candeeiro de azeite.

Súbito, no silêncio da habitação, soaram, soturnas, repetidas, machadadas rápidas, uma, duas, três, muitas, regulares a princípio depois desatinadas.

- Anda! traze a luz! - estertorou uma voz estrangulada.

Entrou no quarto o outro vulto, a velha gorda, com a candeia acesa.

Apenas a luz bateu na cama, numa horrível massa de roupas e carnes ensanguentadas, dois gritos sufocados misturaram o seu horror:

- O Jequim!!!

- O filho!! O meu rapaz!!

                                                           ***

Fora, na estrada deserta, voejavam os bacuraus, como almas penadas.

(Horas do bom tempo, 1901.)